Foi numa chuvosa quarta-feira de Cinzas. Tragado por toda sorte de sentimentos reflexivos, fui com meu pai (seu Paulo Roberto) para uma mis...

Santuário da Guia à luz de velas

igreja da guia paraiba

Foi numa chuvosa quarta-feira de Cinzas. Tragado por toda sorte de sentimentos reflexivos, fui com meu pai (seu Paulo Roberto) para uma missa às 19h30min na Igreja de Nossa Senhora da Guia, em Lucena. Um motivo muito forte que suscitou a ida àquele santuário foi o de encomendar missa de sétimo dia para minha tia Nevinha (tia de meu pai, mas tão presente como se tia primeira fosse), pessoa extraordinária que morava no Recife (PE) de onde partiu, na quinta-feira anterior, aos 71 anos.

igreja da guia
Igreja da Guia (PB)
A Igreja está localizada estrategicamente sobre um platô próximo ao distrito de Costinha com uma visão privilegiada de toda a foz do Rio Paraíba (e da Fortaleza lá no Cabedelo). Construída em 1591, sendo uma das primeiras construções destas terras coloniais, fazia parte do aporte de segurança da Capitania da Parahyba. É uma belíssima construção em pedra e cal. E sua arquitetura em estilo ‘Barroco tropical’ resiste ao tempo com toda sua riqueza e imponência.

A missa começou alguns minutos após o combinado, acompanhada de fina garoa que cedeu lugar para chuva torrencial. Postado na nave, ao lado de uma porta lateral, daquele ponto avistava ao longe as luzes de Cabedelo e os pingos de chuva não me incomodavam, pois faziam parte daquele momento reflexivo, um elo com o sobrenatural. Observava atento as colunas, coroas, anjos, folhagens, capitéis, o arco do altar-mor, o próprio altar... tudo muito bem talhado, todos os detalhes. Olhei para o arco e vi a pedra angular balanceando as forças ali concorrentes, de imediato vi Jesus, na cruz, a pedra fundamental da Igreja em sofrimento. De imediato me veio à mente a Semana Santa que se iniciaria e todos aqueles santos cobertos de roxo simbolizando a tristeza, dor e a penitência da Quaresma.

uma rainha que desconhecia rancor, ódio e também ingratidão
Chega o Padre, inicia-se a missa, a chuva aumenta e as luzes se apagam. A partir de então, só havia luz em alguns postes fora da igreja. Pela porta principal entrava um pouco de claridade que flertava com a sinuosidade dos detalhes entalhados, o altar iluminado por três velas e a celebração continuou ainda mais bela. O lume dos círios ia alcançando as porções mais altas do altar, teto e janelas, devagar, em gradual cadência. Mais acima, os últimos frisos só podiam ser imaginados (não vistos!), ao mesmo tempo que a voz do Padre (sem microfone) e os cânticos eram entoados majestosamente, em coro, sem instrumentos, a sensação era de estar mergulhado no período colonial, séculos atrás, com tantos detalhes aludindo ao passado, aguçando ainda mais a minha reflexão e homenagem. E comecei a pensar nela.

Pelo carinho e elo de sangue, é bastante comum elogiar parentes. Os nossos são sempre bons, mas essa minha tia, Maria das Neves Oliveira, saiu da Mumbuca, da Serra do Maracajá, zona rural de Campina Grande, e foi para Recife lutar por um sustento para a família, isso nos idos da década de 1960. Abraçou e encaminhou todos os seus irmãos em profissões; de representante comercial se tornou uma grande empresária em Recife, foi premiada na China e na Coréia do Sul; deu casa, emprego e "vara para pescar" a todos os familiares, dos mais próximos aos mais distantes, um manto que cobria do frio todos os Oliveira.

De uma generosidade e amor sem limites foi esteio de nossa família e sempre contagiava todo mundo com uma energia e alegria de viver realmente grandiosa, uma rainha que desconhecia rancor, ódio e também ingratidão. Em 2006 quando soube que eu estava escrevendo um livro, procurou-me para saber dos detalhes e fez questão de "bancar" a publicação. Um exemplo de ser humano que soube se superar pelo amor. A dor de sua ausência é grande, não tem tamanho. Seu processo de doença (agravado pelo diabetes) não durou muito, é como aquele adágio popular que diz que as pessoas muito boas não devem sofrer... E como diz a música "Dona Cila", que a cantora Maria Gadú fez para sua avó: "Ó meu pai do céu, limpe tudo aí / Vai chegar a rainha / Precisando dormir/ Quando ela chegar / Tu me faça um favor / Dê um manto a ela, que ela me benze aonde eu for"... Nevinha, se buscamos a todo o tempo sermos boas pessoas, pessoas melhores, é porque tínhamos um grande exemplo a seguir; o seu. Desde muito pequeno que seus atos são sempre exemplos pedagógicos de Papai, sinônimos do bem, daquilo que é melhor.

Foi fazendo essa reflexão que eu entendi o porquê daquela missa estar sendo tão mística, diferente, especial. No fim ainda recebi, na testa, as cinzas que foram ofertadas a quem não pode estar no dia anterior pela forte chuva que banhou Lucena. Que Deus dê o céu a tia Nevinha, exemplo de cristandade e amor ao próximo.


Thomas Bruno Oliveira é mestre em história e jornalista

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