Todos os idosos se parecem; alguns aproveitam a alegria do presente, outros, atingidos pela “caduquice”, andam de braços com a saudade, vivem seu passado como se fosse o presente, enquanto o presente lhes parece alheio.
Ele começou a mudar, foi ficando mais quieto, não participa do que acontece ao seu redor.
Do terraço da casa, fica olhando as ruínas do engenho Paulo Afonso, onde viveu num constante borbulhar.
Repete várias vezes o quanto fora feliz ali. Com os olhos marejados, viajando pelo mundo das lembranças, consegue ver toda movimentação daqueles dias de glória e fartura. Sento para ouvi-lo mais uma vez debulhar sua história.
Começávamos a lida cedo. O corte da cana era feito antes do sol levantar. As moendas não paravam de gemer, enquanto mastigavam a gramínea como se fosse a mais deliciosa fruta. Extraiam todo o suco e cuspiam apenas o bagaço. Só uma pequena quantidade desse caldo era destilada em um alambique de cobre, que chorava a mais limpa e deliciosa cachaça de cabeça daquelas bandas. A outra parte seguia para a fabricação de rapadura. Não me cansava de ver aquele espetáculo. Iniciava quando o caldo era despejado nos tachos de cobre para aquecer e virar melaço. O mel, em cachoeira, descia para as tinas. Ao atingir o ponto de cozimento, era misturado por enormes conchas para ficar com a coloração marrom e ser colocado em cochos de madeira para esfriar. Estava pronta a rapadura.
A farra da meninada era chegar com um pedaço de cana raspada, onde despejávamos um pouco do melaço quente, quando esfriava eles começavam o puxa-puxa, até transformar aquele mel escuro em branquinho alfenim. O programa do final de tarde era na casa de farinha, onde a massa da mandioca, depois de passar por diversas fases de limpeza, era peneirada e colocada numa enorme superfície quente. O farinheiro mexia aquele pó branco, com uma espécie de rodo que ia constantemente para frente e para trás, até conseguir o cozimento final. Não saíamos de lá sem tomar café e comer o beiju feito na hora.
Sinto cheiro: do bagaço de cana e das flores; do mato verde; do café e da farinha, do estrume e tantos outros; e escuto os sons: o cantar dos pássaros, o chorar das moendas. E do crepitar da lenha queimando. O pingar da cachaça, o gemido do carro de boi e o uivo da forrageira desfiando o agave.
Assim, ele, alheio à minha presença, vivendo o tão presente passado, como se estivesse cansado da lida, fechou os olhos e cochilou.
Ana Paula Cavalcanti Ramalho é psicanalista e escritora