Cinco vezes! Foram 5 chances para se evitar tal absurdo. Mas a burocracia, a desatenção com os idosos, a indiferença com os mais velhos, o descaso com um ancião, concorreram para o disparate.
Vocês vão me dar razão.
Antes de prosseguirmos, é preciso deixar claro como era o contexto na “cena do crime”: o Hospital Santa Isabel, à época do fato. A forma como era administrado colaborou para o que aconteceu.
Hospital filantrópico, pertencente à Santa Casa da Misericórdia, o Santa Isabel tornou-se hospital-escola da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Paraíba.
Embora tivesse direção, e algum grau de organização, não é o que parecia para os alunos do curso médico: pois, para nós o Santa Isabel não tinha dono.
O que tinha “donos”, mesmo, eram as enfermarias. Eram distribuídas pelas disciplinas. Todas com os nomes de seus padroeiros, as enfermarias eram verdadeiros feudos, com sistema de príncipes, condes, duques e barões, todos nossos mestres.
Das enfermarias que eu me lembro, as mais destacadas, e seus respectivos “senhores”, eram:
Enfermaria São Luiz (Urologia): médicos Jacinto Medeiros; Osório Abath Filho; Domilson Maul; Antonio Ciraulo; e João Nóbrega de Figueiredo, o nosso Julê.
Enfermaria Santa Lúcia (1ª Clínica Cirúrgica e Técnica Cirúrgica): Augusto Almeida, o saudoso Augustão, e Nicodemos Gadelha (viviam às turras!); Herul Sá; Ozaes Mangueira; José Romero.
Enfermaria São Miguel (2ª Clínica Cirúrgica): Jackson Araruna; Fernando Carvalho.
Enfermaria Santa Rosa (3ª Clínica Cirúrgica e Proctologia): Francisco Porto (fundador); Pedro Palitot; João Batista Simões; Manoel Jeovah Colaço.
Dando assistência a todos, tínhamos os anestesistas Edrise Vilar; Jurandir Marques; os irmãos Clóvis e Clócio Beltrão; e Fernando Paraguay.
Além destas, tínhamos as enfermarias de Clínica Médica, São José e Santa Ana, onde podíamos encontrar os professores Antonio Dias dos Santos; Eugenio de Carvalho Júnior; Rodrigo Rangel; Hugo Abath; Hugo Toscano; Renato Campelo; Luiz Pedro de Araújo.
O Dr. Vavá iniciou a vida como jovem cirurgião que especializou-se na área digestiva. Mas, fez de tudo: foi urgentista, deu plantões no velho HPS (hospital do Pronto-Socorro, na Rua Visconde de Pelotas), trabalhou em quase todas as salas de cirurgia da Capital. E principalmente nas do Hospital Santa Isabel, onde aconteceu o fato.
Para se sustentar, durante o curso médico foi professor de Biologia, sendo lembrado por seus ex-alunos como brilhante mestre. Ainda ecoam neles, por exemplo, as aulas de fotossíntese, celenterados, mitoses e meiose.
Notabilizou-se, também, pelo prazer pela música e pela dança, o que lhe rendeu o apelido de Pé de Valsa.
Meados dos anos 1970, operou um velhinho, sertanejo, com câncer da cabeça do pâncreas. Doença geralmente fulminante, a habilidade do Dr. Vavá não apenas garantiu a vida, como resgatou a saúde do Seu Nicácio. E num tempo em que não existia UTI.
Foram meses de tratamento, na Enfermaria Santa Rosa, desde após a cirurgia melindrosa até a sua Alta hospitalar.
Meses depois, numa manhã, Seu Nicácio chegou à entrada do Santa Isabel com um peru debaixo do braço, e perguntou ao porteiro: “Onde eu posso encontrar o Dr. Vavá?”
Sem nem olhar, o porteiro apontou para a recepção. Seu Nicácio entrou até a portaria, e perguntou pelo Dr. Vavá. A recepcionista, atarefada, disse: “Dr. Vavá está lá no Centro cirúrgico”. E apontou para a porta que dava para o corredor principal.
No corredor, Seu Nicácio olhou prum lado e pro outro, em dúvida. E perguntou ao enfermeiro alegre que ia passando: “Onde fica o Centro cirúrgico?”
Caminhando apressado, o enfermeiro apontou para o fim do corredor. E para lá se foi Seu Nicácio. Com o peru debaixo do braço.
No fim do corredor tinha a entrada para o salão principal do Centro cirúrgico. Nele, duas auxiliares conversavam animadamente, enquanto enrolavam gaze para ser esterilizada.
Seu Nicácio perguntou: “Cadê Dr. Vavá?”
Uma respondeu, apontando para a porta vai-vém de uma das salas: “Está aí dentro, operando”. E continuou a conversa.
Seu Nicácio finalmente entrou na sala de cirurgia. O movimento era de Festa das Neves: circulantes-de-sala esbarrando em estudantes; enfermeiras dando ordens; técnico de raio-X esperando; três médicos em torno do paciente; anestesista cochilando.
Seu Nicácio perguntou: “Qual é o Dr. Vavá?”
A enfermeira que trocava a bolsa de soro apontou para um dos médicos.
Aí, deu-se o absurdo. Olha que teve cinco oportunidades para ser evitado.
Seu Nicácio enfiou o peru no campo cirúrgico, dizendo: “Dr. Vavá, o senhor salvou a minha vida. Trouxe esta lembrancinha para o senhor!”
O grito do Dr. Vavá foi ouvido até a entrada do hospital: “QUEM FOI O IMBECIL QUE DEIXOU ESTE PERU CHEGAR ATÉ AQUI????”
O que se viu, em seguida, foi uma reação em cadeia.
As enfermeiras de sala se esquivaram: “Foram elas!”, apontando para as auxiliares da esterilização.
As auxiliares tremeram: “Foi o enfermeiro alegre!”
O enfermeiro, já não mais tão alegre, esfriou: “Foi a recepcionista!”
A recepcionista, quase chorando: “Foi o porteiro!”
O porteiro foi demitido.
Alguns criticaram a reação do médico, dizendo que ele podia ter sido mais paciente, demonstrar mais gratidão. O fato é que Dr. Vavá botou Seu Nicácio para fora da sala, e jogou o peru pela janela.
Outros, exagerados, dizem que o peru ainda deu uma bicada num grão de feijão do estômago do paciente. Outros, mais exagerados ainda, afirmam que o peru deixou a sua “marca” no chão da sala de cirurgia.
O fato é que nunca mais entrou uma penosa sequer no Hospital Santa Isabel.
José Mário Espínola é médico e escritor