Padre Pedro era um jovem servo de Deus. Não se haviam passado mais que dois anos desde sua ordenação. Estava então com vinte e nove anos. Socialista convicto, o reverendo era bastante politizado. Familiarizou-se com os textos esquerdistas ainda na adolescência, quando seu tio Arnaldo, retornando do sul, iniciara-lhe na literatura comunista. Adorava os clássicos, principalmente Lenin. Dedicava tardes inteiras ao estudo da causa operária. Deliciava-se com a idéia de revolução popular, de um mundo sem desigualdades e sem fronteiras, da socialização dos meios de produção... Esse aprofundamento teórico sobre as causas populares refletia em seu caráter. Reto, não admitia nenhuma forma de desonestidade. Pagar a conta de luz de um amigo que tentava furtar-se a fila do banco lhe era um absurdo. Repreendia-o incisivamente.
As pessoas lotavam a missa para ouvir o jovem padre e suas explicações sobre mais-valia, capitalismo selvagem, burguesia, união proletáriaA vida eclesiástica veio com um pedido de sua saudosa mãe, beata fervorosa, já então bastante doente, que tinha como maior desejo ver um de seus oito filhos enveredar pelo caminho da evangelização. Pedro não podia decepcioná-la e, ainda que vacilante quanto a sua vocação, diante da inércia de seus irmãos para satisfazer os desejos da mãe enferma, ingressou no seminário, deixando-a muito orgulhosa. E, mesmo após a morte de sua amada genitora, não descumpriu os votos, tendo continuado os estudos para o sacerdócio.
O contato com os ensinamentos sacros fez-lhe perceber que as teorias socialistas que tanto apreciava tinham algo de semelhante com os ensinamentos de Jesus Cristo e de tantos outros pregadores, como São Francisco de Assis. A partilha, o desapego ao material. De alguma forma o futuro pregador vislumbrava semelhanças entre o marxismo e o cristianismo. Então lhe ocorreu que poderia conjugar os ensinamentos do evangelho com as teorias de esquerda. E assim carregou sua ideia por todo internato, para o qual passou a dedicar-se avidamente. Sua opinião primária sobre religião – “ópio do povo” – então se dissipara. Essa definição havia sido um dos poucos erros de Marx. A catequese era instrumento eficaz contra a alienação da massa, pensava.
Terminado o seminário, depois de um pequeno período na capital, foi designado para a paróquia de Santa Ana, na pequena cidade de Santana. Ali não viviam mais que duas mil pessoas. A maioria sobrevivia da agricultura de subsistência. A classe mais privilegiada era sustentada pelos cargos públicos. O jovem padre foi bem recebido pela comunidade, e ele apressou-se em pôr em prática sua ideia de evangelizar e politizar, ao mesmo tempo. Seu estilo impetuoso foi recepcionado com calorosa euforia pela população pouco afeita às coisas da política, ou a qualquer outro aspecto do conhecimento que não fossem as sagradas escrituras, e que estava acostumada ao antigo Padre Bento, ancião que se limitava a ler os escritos divinos em suas preleções.
Quando alguém lhes oferecer um saco de cimento em troca do voto, diga-lhe um veemente não. Não aceitem presentes em troca de seu sagrado direito ao voto livreAs pessoas lotavam a missa para ouvir o jovem padre e suas explicações sobre mais-valia, capitalismo selvagem, burguesia, união proletária, tudo sob a ótica do Sermão da Montanha e da biografia de São Francisco. Os fiéis o ovacionavam, até mesmo quando da famosa missa em que ele, explicando o que era nepotismo, disse: – “Meus irmãos, tal prática virulenta à administração da coisa pública é o apadrinhamento, é o indicar para cargos públicos sem critério técnico, mas apenas por afinidade, amizade e parentesco. Por exemplo, Jesus foi um nepotista, pois todos os seus apóstolos, com exceção do pobre Judas, tornaram-se santos. E não se sabe que critério ele utilizou para aferir a santidade daqueles homens. Pedro, meu xará, por exemplo, negou-lhe três vezes, mas lá está, Santo, com direito a festa junina e tudo”, falou rindo, para que entendessem que se tratava de uma pilhéria. De todo modo, o caso foi parar na arquidiocese, mas com o apoio dos fiéis o jovem pároco safou-se de qualquer punição.
A euforia com os sermões dos domingos era tão grande que o povo, que mal sabia assinar seu nome, discutia nas ruas as causas da derrocada do comunismo na União Soviética, distinguiam em poucas palavras o stalinismo do trostkismo e declamavam, nas esquinas, os feitos de Mao Tsé Tung e Ho Shi Min. Padre Pedro era uma verdadeira celebridade na cidadezinha. Durante a semana palestrava nas escolas e no sindicato dos trabalhadores rurais. Pobres e mais afortunados convidavam-lhe para o jantar, e prestavam atenção nas sábias palavras do jovem presbítero sobre materialismo dialético.
Então as eleições municipais se aproximaram. Seriam escolhidos o prefeito e os vereadores da cidade. Eis o primeiro teste para o pregador. Teriam os fiéis assimilado seus ensinamentos socialistas? Na missa que antecedeu ao pleito, o padre fez seu discurso mais apaixonado.
Na missa de domingo, após as eleições e o apaixonado sermão, ninguém compareceu a igreja, salvo o maluco Neemias, que ali pedia esmolas– “... e finalmente chegamos na hora crucial. Devemos pôr em prática tudo aquilo que debatemos nesta sagrada casa de Deus nos últimos anos. No próximo domingo ocorrerão as eleições e todos nós temos uma missão. Votar com a consciência. Votar pelo bem de todos e não em razão do tio ter um emprego na prefeitura. Deixemos nosso egoísmo de lado e finalmente pensemos no próximo. Quando alguém lhes oferecer um saco de cimento em troca do voto, diga-lhe um veemente não. Não aceitem presentes em troca de seu sagrado direito ao voto livre. Tenho certeza que essa comunidade aprendeu o que é ser cidadão, assimilou seu papel na sociedade. O eleito deve ser administrador de todos e não de alguns. Não pensemos no cargo prometido, mas sim nos benefícios para a coletividade que o novo governante possa oferecer. Mateus 7: ‘quem ouve essas minhas palavras e as põe em prática, é como o homem prudente que construiu sua casa sobre a rocha’, mas se ‘não as põe em prática, é como o homem sem juízo, que construiu sua casa sobre a areia’. E não faço questão de receber, sob este teto sagrado, o insensato que construir sua casa sobre areia. E sei que serão poucos”, finalizou, com os olhos já marejados.
Na missa de domingo, após as eleições e ao apaixonado sermão, ninguém compareceu a igreja, salvo o maluco Neemias, que ali pedia esmolas. Padre Pedro olhou para o relógio e resignado sentou-se no batente do altar, tomou o vinho que estava no cálice e fixou seu olhar na grande porta principal.
Douglas Antério é advogado e escritor