Pierre Bezúkhov é o conde; Andrei Bolkónski é o príncipe. Oriundos de duas famílias ricas, importantes e respeitáveis, são dois amigos com trajetórias de vida diferentes, mas que, em um determinado momento, se encontram e se afinam de maneira admirável.
Andrei, criado com o pai, nunca teve da parte do velho príncipe Nikolai Bolkónski um gesto de carinho e de compreensão. Nas duas vezes em que esteve na guerra, Andrei foi movido pelas discórdias com o pai. Duas vezes ferido – Austerlitz (1805) e Borodinó (1812) –; duas vezes herói, Andrei morre em decorrência do último ferimento, na famosa batalha que decide o rumo da malfadada campanha da Rússia, empreendida por Napoleão Bonaparte. Se em Austerlitz, depois de ferido, Andrei tem uma visão celestial, que lhe traz uma enorme tranquilidade; em Borodinó, atingido por uma granada, ele descobre que a paz vem do amor incondicional, o amor que não precisa de “para quê” ou de “por quê”, o amor pelo amor, capaz de amar seu inimigo.
Nos seus últimos momentos, sendo cuidado por Natacha Rostóva, a prometida que o decepcionara, Andrei está em plena tranquilidade e a morte já não o inquieta. Diante de si, ele só tem as visões do amor espiritual. Um pouco antes de morrer, efetua-se um desdobramento e Andrei tem a plena consciência de que Natacha e a irmã Mária estão apenas cuidando do seu corpo, pois seu espírito, embora não tenha acontecido o desligamento total, já não se encontra ali. É uma das passagens mais belas de Guerra e Paz.
Pierre, por sua vez, é uma alma sem rumo. Não foi criado pelo pai, o conde Kiril Bezúkhov, de quem era filho bastardo, mas foi amado por ele até o último momento. A contrapelo do que se curvavam como abutre sobre o moribundo conde, em disputa do seu espólio, como o decadente e alcoviteiro príncipe Vassíli, o velho conde deixa toda a sua fortuna para Pierre.
Desprezado e traído pela mulher, Pierre busca um sentido na vida, vendo essa luz na acolhida que a Maçonaria lhe dá. Entusiasma-se, quer ajudar as pessoas, melhorar a vida de seus servos, fazer novas moradias, abrir escolas, nada parece dar certo e o vazio de sua alma não encontra qualquer consolo. Acreditando-se imbuído de uma missão divina, tenta matar Napoleão, salva uma criança do incêndio de Moscou, mete-se em confusão com um soldado francês, quase é fuzilado como incendiário, é levado para a prisão. Desencantado com os homens e com a vida, Pierre encontra na prisão o soldado Platon Karatáiev, também prisioneiro, que lhe ensina, sem qualquer atitude professoral ou pretensiosa, sobre a simplicidade de viver.
O que os faz ir em busca da fé na vida e nos homens, senão a compreensão de que poderiam ter feito mais com suas vidas?Pierre readquire a confiança no ser humano, na vida, redescobrindo o prazer das pequenas coisas, saboreando um pedaço de batata que Karatáeiv lhe oferece, ao partilhar o seu almoço com o conde, cuja identidade ele não conhece e nem está preocupado em conhecer. Para Karatáeiv, ali se encontra um ser humano, não há necessidades de títulos. São os momentos de privação de comida, de liberdade e de limpeza, que ensinam a Pierre na prisão, a partir do exemplo de Karatáeiv, demonstrando tranquilidade, aceitação e aproveitamento do que a situação oferece. Mais do que comer é preciso saborear a comida. Mais do que viver é preciso saborear a vida.
O que faz Bolkónski e Pierre mudar, senão a adversidade? O que os faz ir em busca da fé na vida e nos homens, senão a compreensão de que poderiam ter feito mais com suas vidas, quando estavam em posição de privilégio e de conforto? Muito além das doutrinas filosóficas, políticas e religiosas, Tolstói nos ensina que o mar tranquilo e de Zéfiros amenos não faz o navegador. Assim como o ferreiro se faz no trabalho da forja, no calor do fogo e do metal ao rubro, no respingo do ferro em fusão, na firme batida do martelo sobre o aço na bigorna, são os mares revoltos e os ventos tempestuosos o cadinho em que se forja a têmpera do piloto. Um aprendizado que pressupõe coragem e disposição para transformar o sofrimento em sabedoria.
Condes, príncipes e plebeus só aprenderão com a vida, quando confrontados com as dificuldades que ela nos reserva.
Aprendamos.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor e escritor