Palavras. Com o tempo, se transformam. Viram eco. Sombra. Do que foram, um dia. Eco da própria sonoridade. Sombra da imagem que pretendeu formar. Mas sempre elas, palavras. Ditas lá no seu início e para surpresa de quem, desde muito cedo, passou a acompanhá-lo aonde fosse, levado, a princípio, por sua mão, ele naquele seu ímpeto. Dos bons tempos. Vocação quase missionária, na mais nova e corajosa iniciativa que despertava comentários pela porção do mundo adulto em volta. Mas lá, de qualquer forma, a lhe seguir os passos na aventura de terminar de criar o homenzinho que viera não se sabia de onde. Do “Forno Velho," diziam uns. Da Piedade, outros.
Ficavam a lhe monitorar progressos, muito possivelmente com a observação fundeada nalgum substrato daquela velha ideia que se desenvolveu nos trópicos, desde que uma primeira leva de brancos aportou por aqui, para logo descobrir que o paraíso não só existia na terra como estava assentado sobre uma montanha de ouro, e que, consequentemente, toda forma de integração social era legítima desde que se desse após o grande assalto.
Mas de qualquer forma tratava-se ali de um ajuste que fosse aos poucos integrando a criança ao núcleo drasticamente reduzido daquela família, esforçando-se o homem para lhe passar os rudimentos desse novo mundo que tinha pela frente, dessa nova vida, como se cansaria o menino de ouvir.
Havia a lista estafante de comportamentos e hábitos obrigatórios, que começavam cedo da manhã. As abluções. O ritual de vestir-se. O lanche para a escola. Alguma aventura lacustre de não molhar os pés naquela passagem, etc. E às quais lançou-se, de início, com todo o empenho que aquela desigual carga de estímulos, provinda do homem, fosse capaz de injetar no garoto magrinho, negro e desengonçado. Aquela dose diária de ânimo a que fazia jus como uma espécie de boneco inflável, que, por sua vez e para merecer o nome, fosse incapaz de passar sequer algumas horas sem requisitar nova injeção pneumática. Sem a qual, nem esse próprio beneficiário final, lembrando-se agora, apostaria um vintém que fosse no sucesso da empreitada. Até porque o homem, enérgico, e que às vezes o vinha pegar pela perna para que acordasse e já saltasse da cama, não haveria nunca de erguer a mão para esse, em vez nenhuma, nem mesmo o assustaria ou amedrontaria usando de rispidez nas palavras.
Ia ser preciso aprender. O costume da terra - diziam. O que isso significava. Queria dizer o quê? Fosse o que fosse, era sempre difícil para quem se vira obrigado a se desfazer das próprias lembranças que trazia, e que de nada lhe iam servir naquele lugar. Ninguém lhe havia dito que assim fizesse, mas elas foram sendo deixadas num canto. Onde não eram de causar mal nenhum. Uma espingarda descarregada, num canto. O último fio delas a que pôde, de fato tocar, pegar, o menino o trouxera colado ao corpo. Aquela pequena trouxa sobre a carga do caminhão continha uma insignificância de roupas amarfanhadas e impregnadas pelo muquifo, que, naquela madrugada mesmo o menino havia deixado para trás, no lugar onde se cozinhava em fogo de chão. E com aquela fumaça de mato verde subindo e tisnando a parte superior da taipa e das telhas, e pela qual, anos depois, de alguma forma voltaria a se sentir sufocado. Para isso bastando apenas rever-se naquele cenário confuso e de sonho confuso. Bastando evocá-lo. A nele sobressair-se, no entanto, havia aquela incessante ação humana. A mulher. A imprevisível, mas constante movimentação da mulher, a entrar e sair.
Podia vê-la (do lugar onde sempre ficava) agachar-se, podia ver como era sempre extremamente flexível, de cócoras no limiar da porta, onde uma tábua serve de soleira, e por onde assoma a luz oblíqua. Ou mais na penumbra, dentro do muquifo e a servir-se de abano, tição, caneco de cabo comprido, vassoura de ramos silvestres. A mulher e seu corpo de mil possibilidades. Vale-se de algum entalhe anatômico com a mesma assertiva com que uma embarcação tira proveito dos relevos da costa. Estava sempre retirando algum apetrecho do vão da orelha, de debaixo do queixo, de entre os dentes, dos seios, da amarração do lenço nos cabelos, onde provisoriamente o alojara, para dele servir-se na tarefa diária de algum corrugue, depeno, moqueio, etc. Mas agora revendo-se escanchado em sua cintura, sob o sol.
Uma grande clareira. Neg' Ana a mover-se entre a multidão de cascos avermelhados. Empilhados de borco e feitos de terra amassada e torneada. São dispostos em volta dos grandes montes, redondos feito iglus de fogo crepitando nas bocas, à altura do chão, e em volta dali toda aquela gente, de cócoras, a maioria, e cuspindo as vozes que ouve também como uma crepitação. Enquanto a mulher, aqui e ali, com um simples solavanco de quadril rearruma a carga no vão da cintura, de modo a que o menino permaneça lá escanchado, a tiracolo, com uma perna sobre seu ventre e a outra sobre a bunda, literalmente sentado nas cadeiras dela.
O garoto, às vezes, percebendo quando ela firma a perna sob a anca que o sustém, assumindo, assim, postura de toco, ou árvore, com a parte superior do corpo em forte inflexão para o lado oposto, que se mantém em equilíbrio devido ao posicionamento da outra perna que abriu compasso no mesmo sentido. E o menino, então, apercebendo-se ali como numa forquilha do tronco, numa altura em que pode relancear em tomo, enquanto conversa ela com o homem de pele clara, e, também, de cachimbo na boca.
Depois, na sombra, de volta, no interior do muquifo, ouvindo a voz que interrompe o resmungar com um grito lacônico que é quase latido de cão, e que responde a alguém fora dele, talvez àquele do cachimbo. Mas sempre aquela voz, irrompendo às vezes num canto abrupto e que pode depois amainar para som cavo, cantante e ininteligível de reza. Que por sua vez poderá se interromper em algum intempestivo, blasfemo imprecar por pano voado de varal, incontinência de vento ou de fogo, de fervura derramando-se.
Toda aquela movimentação seguida do cortejo de luzes atravessando o dia, embora aqui ou ali entremeada por períodos de silêncio e incerteza, até o momento, sempre esperado por esse, em que não via mais nada, a não ser a luz ardendo para contraste das sombras fortes, e que, por um momento, deixariam de ameaçá-lo. Pois que havia sido finalmente tomado e erguido e envolvido por aqueles braços para que mergulhasse e se perdesse em sucção, a quase afogar-se no cheiro avassalador e minado da natureza mais íntima, e de cuja fonte extrairia aquele sumo debelador de acidez e ânsia. Aquele líquido morno, invisível e latente, e que parece sair da pele da mulher e evolar-se pelo ar, impregnando por completo o ambiente, para completa acalmia de sua incipiente estrutura física, envolta ali num sudário esgarçado por uso e sarro de pobreza antiga. Sentindo, apesar de tudo, passar através de si aquela corrente indomável, eficaz e cheia, e pela qual a vida lasciva, infalível, aprestou-se em lhe transmitir seu primeiro e genuíno calor humano.
Alberto Lacet é artista plástico e escritor