Ele teve medo e desespero. Sentiu-se só, desamparado e quase sufocado por uns picos de pânico que de vez em quando lhe assolavam a base da espinha e por vezes lhe paralisavam a respiração. Fez-se só na vida. Nada de importunar parentes, amigos. Nas noites de insônia, depois de muitas tentativas inúteis de se conectar com um mundo desconectado, percebeu-se com muitas pessoas em suas redes sociais, mas imensamente solitário. Ligou em vão a TV. Como um croupier de cassino que magicamente embaralha as cartas, seus dedos ágeis zapeavam o controle remoto em busca de uma imagem que lhes trouxesse o sono, senão a paz. Talvez a música pudesse lhe tragar os demônios da noite e lhe assentar nos braços dos deuses do sono. Fechar os olhos e rolar na cama era quase dormir numa cama de faquir. O lençol lhe arranhava os músculos das costas tal qual espinhos de caroá, com sua formosura em vermelho e suas garras de gato de folhas. O travesseiro formigava num comichão de urtiga, misturado com o suor que lhe aflorava o corpo todo, como castigo de penitentes.
Havia ruídos muito estranhos. Talvez invasores, gatunos da noite, malfeitores que sorrateiramente pulavam os muros na calada da noite. Ele não dormiu, enfim. Na sua mente, planos de vencer aqueles medos, de se proteger dos contágios de um mundo cheio de infames e tormentos.
Na manhã que já se avisara em seus clarões, esperou, entre xícaras de café e pílulas da felicidade, que também o mundo despertasse de sua inércia do sono. Após algumas ligações, seus projetos enfim estariam a se cumprir.
No mesmo dia, dezenas de homens com máquinas e matérias de construção ali chegaram. Uns fardados com macacões, botas e luvas a descarregar espinhas dorsais de aço bruto, outros a descarregar sacas de cimento e pedras, naquele amálgama da areia, brita, numa alquimia do mundo plástico para o mundo concreto. Ah, o concreto! Ele vislumbrava no concreto a sua salvação. Ele chegou a se ver naquele meio, entre betoneiras e pás, misturado com pedras fundantes e cascalhos. O som da brita se derramando soava como chuva em tempo seco.
A proposta do mestre de obras era de erguer um muro de 2 metros, pensando em proteção, mas em não esconder a beleza da arquitetura da casa, pensada em dois planos, com vigas que se fundiam numa harmonia de esquadros.
Não. Ele queria mais. Pensou em 3 metros. Pensou em 4 metros. Quem sabe 5? Concordou nos 4 metros, mas com uma cerca daquelas da guerra, daquelas que espiralam a dor das farpas, daquelas que mordem a carne e a sangram como castigo.
Ele se via protegido. Imaginava-se tal qual um senhor feudal tutelado por imensos muros. Ou mesmo um abade adargado pelos imensos torreões das construções sagradas. Talvez até - mas isto era uma proibição – como uma donzela encastelada à espera de seu príncipe, seu salvador, seu tutor de uma vida.
Erguerem o muro e ele encastelou-se. Dormiu bem por duas noites, ainda sob efeitos de pílulas de Morfeus. Na terceira noite, o fantasma do luar lhe visitou. Não havia barulhos. Ele foi à janela. Diante dele o muro.
Ao invés de susto, de pânico, ele chorou. Chorou da dor da proteção. O muro era também separação. O muro era também aprisionamento. E não adiantava a tecnologia naquela hora. O concreto do muro solidificou-lhe também a alma. Sentia-se seguro e abandonado do mundo de lá fora. Chorou pela sua impotência. O potente muro lhe tirou a imagem do sol rasgando o véu da madrugada, dos primeiros pássaros tintilando o dia.
Havia o muro. Mas havia um sumidouro. Havia uma não-existir. Um buraco destes que se sente à boca do estômago. Havia um hiato, mas não entre o muro e a vidraça da janela. Um hiato de si. Uma promessa esgarçada da solidez do muro. Não percebeu ele que, ao construirmos muros inauguramos a cisão e a perda. Os muros são nossos assujeitamentos de um mundo de si, só de si. Há no muro a enganação da segurança. Há nos muros, o esvaziamento do outro, do toque, do olhar. Muro é cegueira.
Ele se sentiu no buraco negro da solidão, porque ergueu um muro.
Era setembro e ela recebeu as chaves de sua nova casa. Um molho com umas 6 chaves para lugares diversos. Está ela parada em frente ao muro de sua nova casa. Experimentou ainda duas chaves até conseguir abrir o portão de ferro. Ela já havia visitado a casa. Mas a sensação de ali entrar com as chaves próprias tinha um significado bem diferente. Abriu o portão, por entre rangidos e engasgos.
A vida dela era feita de travessias. De gente que vem, de gente que vai, como as canções de Milton.Na primeira noite foi sentindo a casa como quem deita pela primeira vez em colchão novo. Ria à toa e imaginava preencher aqueles espaços com muitos quadros e coisinhas de viagem. Caiu a noite e o breu se fez. Do terraço, ela mirou o céu. Buscava a lua e seus prateados. Ela ainda não havia se erguido. Nessa hora deparou-se com o brusco muro e seu impedimento de tijolos que dormiam uns sobre os outros.
Na sétima manhã ela decidiu pela derrubada do muro. Feito.
Ela viu o mundo crescer e abraçar aquela casa, como um náufrago abraça a terra firme. O mundo é aberto, sem fronteira. Logo plantinhas cresceram onde antes eram as fundações do muro. Matinhos com flores singelas pululavam da terra, entremeados por uns verdores de vida que nem se sabe de onde chegaram. E daí caracóis que rastejavam, formigas e sua incansável lida, e depois beija-flores feito helicópteros de ré, lado e frente.
Ela havia construído uma ponte sobre os nãos do muro. Havia o sim. Havia agora pessoas que passavam e sorriam de estranhamento ou de encanto. Mesmo uns gatunos que já vislumbravam facilidades pra suas artes de surrupio, resolveram não invadir uma casa sem muro, pois que lá nada de valor poderia haver.
Nas outras manhãs e à tardinha, um bando de crianças corria num esconde-esconde e pega pelo jardim dela. Atravessavam a ponte-jardim, o espaço de intermédio que me conduz ao outro. A casa estava ligada ao mundo, aos transeuntes e ela nunca estava só. À noite, naquelas mais escuras, um vigilante sempre atento, passava pelo jardim e a ela acenava.
A vida dela era feita de travessias. De gente que vem, de gente que vai, como as canções de Milton. A ponte é a aventura de ir-se e poder voltar, de transitar para um mundo outro, quando a ponte nos leva para o outro lado de um rio atrevido.
Quantas pontes de rios e abismos teremos atravessado antes de chegarmos ao mar?
Um humano não é uma margem que apenas existe de um ou de outro lado. Um humano é algo como uma terceira margem, uma ponte que sempre me leva para um outro. Um sinal de que somos contato, nunca distância.
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor