Ele acordou com severas dores no maxilar. Apesar de tantos anos de tratamento, determinadas épocas do ano, as mais frias, faziam com que dores em forma de alfinetes na carne percorressem-lhe a face. Como raios em tempestade, as dores lhes rasgavam desde a articulação da mandíbula até as têmporas em espasmos ocasionais. A medicina havia suspeitado do território do nervo trigêmeo. Na verdade, estas dores eram físicas e muito mais emocionais. Preso durante a ditadura militar, ao se recusar a falar o que não sabia, foi espancado e, ao solo, levou um chute na boca por um coturno daqueles que faziam da força sua profissão de fé. Agora, assomada às dores físicas do trauma, havia o fantasmagórico passado batendo à sua porta, batendo até seus ossos.
E as janelas que se permitiam eram as mágicas janelas dos equipamentos eletrônicos. Um mundo hiperconectado com pessoas hiperdesconectadasEle estava em casa. Havia uma pandemia cujo mote era tornar a casa, para uma minoria que podia, um bunker contra uma guerra biológica. Muitas imagens e notícias. Muitas regras e alegorias de uma vida feliz em casa, ao lado dos confortos tecnológicos, de artistas fazendo espetáculos ao vivo em seus smartphones de última geração. Apelos dramáticos de se manter protegido em casa.
Aos que nem casa tinham, ou que moravam em casebres que abrigavam muitas pessoas, o desespero era a vida cotidiana. A morte, ingrata e vil para uns, era a contadeira de histórias diárias para outros.
Falavam-lhe o tempo todo de solidariedade. Clique aqui, deslize o dedo ali. A solidariedade eletrônica era mais cruel do que a própria peste.
Em nome do bem comum, as cidades foram trancadas. Lockdown era o nome bacana para o aprisionamento total. Talvez pela primeira vez, os aprisionados aplaudiram seus algozes em nome da cura.
Ele vivia confortavelmente e o lockdown não lhe seria nenhum constrangimento. Mas as janelas abertas eram como as janelas das prisões, abertas como uma farsa, abertas com grades por fora. E as janelas que se permitiam eram as mágicas janelas dos equipamentos eletrônicos. Um mundo hiperconectado com pessoas hiperdesconectadas.
O alimento de toda peste é o medo. Não o medo de morrer, mas o medo angustiante de viver. Não há cura e nem remédio para a peste.Os apocalípticos de um lado cantavam em loas as bondades de um mundo das máquinas inteligentes. Da peste que realmente existia, fizeram um espanto, uma cortina de fumaça para esconder tantos leitos de UTI que nunca se realizaram porque o dinheiro estava em coberturas, em automóveis, em condomínios, em contas no exterior. Os velhos, nunca tidos como cidadãos, foram exaltados como elementos de grande fragilidade, eleitos da peste. Meses antes, suas aposentarias e suportes financeiros foram esmigalhados, tudo em nome do bem comum. Num país no qual o bem comum nunca existiu, este mesmo bem comum se torna a ponta de lança para controlar corações e mentes.
Do outro lado, os cínicos. Estes debochavam da peste, debochavam dos mortos, como sempre o fizeram. Como hienas, gargalhavam ao redor dos corpos sem vida, dos doentes arrastados pela sanha da peste. Os canalhas eram a própria peste. Pestilentos, desfilavam em seus carros de luxo pelas ruas como zumbis desembestados por carne fresca. Seu slogan era “e daí?” Sua farda era verde e amarela. Rugiam ferozmente como vampiros sem medo da morte, por mortos viverem. Eram legiões, também clamando pelo bem comum, disfarçados de cristãos, mas com a moeda de César em uma mão e uma arma engatilhada na outra. Em suas veias corria não só a sede do vil metal, mas o sangue dos contaminados e mortos. Mais tarde, iriam tornar a cura numa enxurrada de lucros.
Pela calçada, ele via alguns transeuntes de máscaras. Pensou em super-heróis mascarados pelo medo do reconhecimento público. Os morcegos em Batman, o capuz vermelho do Homem Aranha, a couraça do Pantera Negra, o disfarce do Demolidor e até a máscara-metade do Fantasma da Ópera. Imaginou também a bandidagem que se mascara: o Coringa e seu riso cínico, Hannibal e sua focinheira, os palhaços de S. King, a máscara de hóquei de Jason, a fantasia fantasma de Halloween, o fantoche de Gigsaw.
A proteção que mascara o riso e a tristeza. Para ele, nada melhor que a metáfora da máscara. Afora as máscaras que se inventaram nas redes sociais e seus avatares do desejo, lá fora as máscaras sem metáfora. Ele pensava que mesmo findada a peste, as máscaras iriam continuar.
Por um momento, ele abandona a visão da sua janela. Pela casa há outras. Uma janela enorme na sala, uma telona. No braço do sofá, seu smartphone e suas telas ilusórias. Havia também tablets e dispositivos inteligentes com muitas janelas sedutoras. Todavia eram janelas com trancas. Eram também máscaras. Máscaras de um tempo maquínico e sufocante.
A peste os fez ver que as máscaras já abonavam os aromas do mundo. Porque mesmo as inteligentes janelas nunca irão substituir os odores das coisasTal qual os anos de outra peste, o amor virou risco de vida. No início da peste, se falava com amigos e vizinhos tocando-se pelos cotovelos. As mãos, antes expressão complementar maior da fala, foram algemadas. Os dedos que deslizavam nas teclas do piano, que amarravam as cordas dos violões e apertavam as chaves e pistões dos instrumentos de sopro, tornaram-se vilões a serviço da peste. As mãos gangrenaram e os dedos se estiolaram para não espalharem a peste. Tal qual a boca e seus sons, vestiram-se as mãos de luvas.
Ele sabia que suas impressões sobre o mundo poderiam ser consideradas nefastas. Ele não se integrava nem nos apocalípticos e nem nos cínicos. Ele era um vivente. A peste não era tão somente um vírus. A peste era a vida. A peste estava na mente e no coração das pessoas. Portanto, nada mais natural que a volta para o casulo. Mas a casa não era nem casulo e nem útero. A casa era o sinal. Ela anunciava algo que ele já vira: indivíduos encerrados em seus egos.
As promessas que saíam das janelas eram para ele também vãs. Um mundo melhor, mais solidário e amoroso. Promessas anunciadas após o fim das guerras, na verdade interstícios de outras tantas guerras. Promessas do após pular as sete ondinhas todos os anos. Ilusões de conformismo.
Entre lágrimas e dores, ele também percebeu que a peste tinha algo de luminoso. Ela tinha o poder de desmascarar todos e tudo. Com seu ferrão mortal, a peste acordava os sonolentos de seu sono de miopia. A peste soprava nos ouvidos dos que tinham posto neles a cera da solidão. A peste fazia que as mãos e seus dedos parassem de fazer o ritornelo de passar páginas nas telas da fantasia. As mãos servem para o toque. Logo cedo o bebê aprende a segurar a mão dos seus cuidadores. A mão afaga o rosto dos apaixonados e enxuga as feridas dos desiludidos. É com as mãos que se benze e que se repele sortilégios. A peste os fez ver que as máscaras já abonavam os aromas do mundo. Porque mesmo as inteligentes janelas nunca irão substituir os odores das coisas. Os odores que tomam os tecidos como seus amantes e dali nunca saem. Os odores impossíveis de ser descritos por palavras, que só o nariz traduz. A peste raspou dos olhos de alguns sua catarata. Quem sabe, um dia, depois da peste, o olhar seja mais sóbrio e firme, como o olhar cheio de raios e de azuis de quem se ama. Como aquele olhar cheio de cascatas de lágrimas de quem contempla o belo.
As dores foram embora. Ele descasou sobre o colo daquele sofá de fustão. Ouviu antes um sussurro sorrateiro. Era a peste que já adentrara sua casa desde a última lua. A peste que avançou sobre suas células, mas delas não fez abrigo. Pois a peste teme a coragem. O alimento de toda peste é o medo. Não o medo de morrer, mas o medo angustiante de viver. Não há cura e nem remédio para a peste. Pois que a peste também somos nós neste planeta. Zunindo devagar, se afasta dele a peste. Ele, sonolento, esboça um sorriso. A peste ganha a rua de vez. Sorrir com a alma é o antídoto das pestes.
Com a sombra da morte, a peste nos devolveu a singeleza da vida.
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor