Mamãe pegou uma laranja. Acabamos de almoçar e ela pegou uma laranja.

Mamãe pegou uma laranja


Mamãe pegou uma laranja.
Acabamos de almoçar e ela pegou uma laranja.
Essa laranja comum, de casca verde, que a gente não sabe nunca se é doce ou azedinha, seca ou suculenta, sabe?
Essa laranja ordinária, vagabunda, que vira suco naquelas máquinas de torturar laranjas, espalhadas pelas avenidas paulistas...
- eu adoro laranja - ela disse, enquanto deslizava a faca pela circunferência perfeita da fruta...
A máquina do tempo fez a sua mágica, naquele momento distraído e tépido.
Minha mãe circundou a fruta com a destreza de um artista de circo, de um cirurgião. 73 anos... Pensei...
Ela arrodeou a fruta com a faca, formando uma serpentina quase perfeita de verde, que se estivéssemos na velha casa do sítio, seria jogada pro alto. Se ficasse presa nos caibros do teto, na primeira jogada, era sinal de boa sorte. Na verdade, era uma solução interessante para afastar mosquitos chatinhos.
Depois de deixar a laranja branquinha, ela fez uma incisão precisa, retirando o tampo.
O tampo é o quinto final da fruta. É a parte que se chupa primeiro. É o prólogo. É o tampo que vai dizer se a fruta é doce ou azedinha.
Essa, pela carinha de satisfação que ela fez, era das docinhas.
- eu adoro laranja - ela repetiu....
Ali, naquela mesa, olhando minha mãe, 73 anos, descascando uma laranja, o tempo fez magia...
Eu, menino.
Mamãe, bem feitas unhas vermelhas, na mesa, descascando cirurgicamente uma laranja... eu adoro laranja...
Eu, menino, num tempo onde não havia nem dor nem medo.
Onde a figura delicada de uma mulher despindo uma fruta, tão leve e sensual, também nos despia de medos e culpas...
Olhei os dedos da minha mãe...
A delicadeza do seu gesto ao levar aquela fruta à boca.
Aquela frase bonita 'eu adoro laranja'...
Eu me joguei no tempo. Num tempo onde não havia perigo.
Senti uma calma tão grande que pensei na morte.
A morte deve ser um lugar tão tranquilo.
Tão tranquilo quanto estar na mesa, olhando os dedos suaves e macios de uma velha senhora, descascando uma prosaica laranja, enquanto fecha os olhos mil vezes deliciados, mas por primeira vez surpreendidos...
- eu adoro laranja... Foi o que ela disse.
Foi saudade
amor
verdade
Foi vontade o que senti.
Vontade de entrar de novo dentro daquela mulher.
De nunca mais sentir medo.
E isso tudo por causa de um mundo que vi numa mulher descascando uma laranja.


Nelson Barros é psicólogo e cronista

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