Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius – os registros históricos são imprecisos sobre seu nascimento; provavelmente entre 470 e 480, possivelmente em Roma, como a maioria defende. Morreu em 524, ao que se acredita, em Pavia, lugar onde repousa seus restos mortais, na basílica de San Pietro in Ciel d'Oro – em seu tratado De Institutione Musica, escrito entre os anos 515 e 520, obra, portanto, de sua maturidade, relaciona a música à conduta ética assim como ao raciocínio puro.

A imagem dos cosmos que Boécio e os outros escritores antigos delinearam nas suas dissertações sobre a música mundana e a música humana veio a reflectir-se na arte e na literatura da Idade Média mais tardia, nomeadamente na estrutura do «Paraíso» no último canto da Divina Comédia de Dante. Vestígios da doutrina da música humana persistiram ao longo de todo o Renascimento e mesmo até aos nossos dias sob a forma da astrologia.

Se alguém ignora por que as estrelas de Arcturo,
deslizam próximo ao ponto mais alto do céu,
ou por que Bootes, lento, conduz o carro,
e, tarde, mergulha no mar suas chamas,
ao passo que é extremamente rápido ao levantar-se,
ficará estupefato com a lei que rege o elevado éter.
Quando se esvaem os crescentes da lua cheia,
recobertos pelo cone de uma noite espessa –
e o que ela escondera com seu disco fulgurante
Febe, irreconhecível, revela como sendo astros –,
um erro comum remove os povos
e eles cansam os címbalos sonoros de tanto tocar.
Ninguém estranha que aos sopros do Coro
a costa seja invadida por ondas impestuosas,
nem que a massa de neve, endurecida pelo frio,
se dissolva pelo calor do fervente Febo.
Aqui, com efeito, é fácil distinguir as causas;
lá, entretanto, elas são discretas, e perturbam os corações.
Tudo aquilo que o tempo não traz senão raramente,
e que, por isso, faz estupefar-se de súbito o vulgo,
uma vez desfeita a névoa do erro,
deixa imediatamente de parecer estranho!
deslizam próximo ao ponto mais alto do céu,
ou por que Bootes, lento, conduz o carro,
e, tarde, mergulha no mar suas chamas,
ao passo que é extremamente rápido ao levantar-se,
ficará estupefato com a lei que rege o elevado éter.
Quando se esvaem os crescentes da lua cheia,
recobertos pelo cone de uma noite espessa –
e o que ela escondera com seu disco fulgurante
Febe, irreconhecível, revela como sendo astros –,
um erro comum remove os povos
e eles cansam os címbalos sonoros de tanto tocar.
Ninguém estranha que aos sopros do Coro
a costa seja invadida por ondas impestuosas,
nem que a massa de neve, endurecida pelo frio,
se dissolva pelo calor do fervente Febo.
Aqui, com efeito, é fácil distinguir as causas;
lá, entretanto, elas são discretas, e perturbam os corações.
Tudo aquilo que o tempo não traz senão raramente,
e que, por isso, faz estupefar-se de súbito o vulgo,
uma vez desfeita a névoa do erro,
deixa imediatamente de parecer estranho!
A estrela Arcturo está distante de nós, terráqueos, aproximadamente trinta e três anos-luz. Ela é a mais brilhante da constelação de Boieiro e desde os tempos de Boécio, ainda, uma das mais brilhantes que alcançamos ver a olho nu no céu. Nessa poesia do macro e micro cosmos, Boécio nos traz a ligação fremente entre o estelar e o pulsar de nossos corações: a canção!
O professor doutor Sam Barrett, cujo interesse em oralidade e cultura medieval são respeitáveis, mergulhou na obra De consolatione philosophiae de Boécio, e dela extraiu, numa espécie de reconstrução, um dedicado, sério e reverente apurado cancioneiro. Vide link

Olhando atentamente para o espaço vazio, um compositor imagina através da convocação do seu conhecimento de dispositivos musicais específicos, não importa se dez segundos ou dez anos depois que ele os lembrou pela última vez. Isso parece implicar que, em última instância, a memória é a oficina do compositor.
Ouvir Boécio hoje é modelar as relações do que se depreende em sua obra: suas inclinações reunidas, suas reflexões poéticas, seu raciocínio filosófico, sua crença teológica, suas palavras em melodia. Mas, e a pergunta feita sobre o entendimento dos merecimentos aos bons e maus? ... Eis que, em tempos pandêmicos, é mister que entendamos o mistério da Arte, que não imita a vida, mas, antes, – como já dizia Antoine Marie Joseph Artaud: “A Arte não é imitação da vida. A vida é que é a imitação de alguma coisa transcendental e misteriosa com a qual a Arte nos põe em contato.” – o viver em busca da perfeição que há no Pai celeste, cumprida em seu unigênito, quando o próprio dá o suporte do qual Boécio não só conhecia como discorreu com seus contemporâneos e unificou em seus tratados aos conhecimentos e descobertas do homem. Assim, responde o texto sagrado à poesia boeciana: “porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos”.

Tudo aquilo que o tempo não traz senão raramente: um vírus, uma moléstia, uma praga ou peste são aparentemente estranhos e causam estupefação para os que não entendem o ritmo cósmico, o compasso universal, o tanger da corda do mundo em que os etruscos criam. E, uma vez desfeita a névoa do erro, as aparências deixam de enganar e desvendam-se os olhos para a poesia, para o tanger dos saltérios e das harpas, para o ressoar pulsante das trombetas, para o rufar vital dos timbales, para os jubilosos adufes, para a canção que transcende, canção que excede todo entendimento.
Sam Cavalcanti é mestre em música, crítico e escritor