Será possível isolar-se? Isolados do vírus estaremos, também, dos seus efeitos no espírito? Quando o alcance da janela só ia até a calçad...

Janela aberta

Gonzaga Rodrigues ambiente de leitura

Será possível isolar-se? Isolados do vírus estaremos, também, dos seus efeitos no espírito?

Quando o alcance da janela só ia até a calçada da frente ou à franja do horizonte físico, o contágio estava mais ou menos evitado. No cólera de 1855/56 isto deve ter sido possível. Éramos 300 mil almas, segundo o registro de Beaurepaire Rohan em sua Corografia da Paraíba do Norte, a capital com 30 mil habitantes, o equivalente ao número de vítimas no Estado. Dez por cento, proporcional à “sciência” de então, embora com os mesmos cuidados, quarentenas e isolamentos de hoje.

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Um horror. Mas a janela se mantinha cerrada para o cólera e para o mundo. O mundo não entrava. Ficamos protegidos diante e em torno dos nossos oratórios. Ouvíamos o rumor aflitivo lá fora, as redes com seus cadáveres, uns restos de pranto, o escavar fora das igrejas para o enterro dos pobres, pois os ricos ou ilustres eram lacrados nos paredões das igrejas. São Francisco, São Bento, Misericórdia, Carmo estão enxertadas desses ossos miasmáticos. A cremação era para os infiéis ou os mártires de sua fé. Confinados, reduzidos à geografia de nossa casa, rezávamos para nós e para os infelizes sem direito a isolamento, pois, se não eram escravos, dependiam do trabalho diário, sem identidade, carteira assinada, sem direito. Tinham de sair como saem hoje os que vão fisgar a isca oficial da emergência.

E agora, no novo cólera, onde estão os olhos do nosso corpo? Estão fora de nós, muito além da janela, trazendo para o receptáculo das nossas reações sensíveis, espirituais, o enterro próximo e o longínquo de cadáveres que até os primeiros meses deste ano se relacionavam como criaturas humanas da mesma espécie de Jesus, Buda ou Maomé, agora inumados às carreiras, amedrontando, descendo para valas como os imensos cardumes que o vazamento de petróleo intoxicou.

Como nos isolarmos se a janela abre e se mantém aberta todas as horas do dia e da noite, nas ruas vazias do mundo, como se a povoação geral, aqui e na China, rolasse inteira para as valas. Tudo em avalanche para dentro de nossa sala, do quarto, do banheiro, a imagem como o mais agressivo dos vírus.

São bilhões de dólares que, na cabeça dele e do seu grupo, garantirão a retomada da economia, da confiança, mediante o seguro controle do contágio
E dá nisso: um Nobel de economia americano, doutor Paul Romer, pressionado pelas 26 mil mortes de Nova Yorque e ajudado pelo dinheiro dos Rockfellers, chefia um grupo de elite de economistas e matemáticos, na montagem de uma equação, um plano de aplicação geral e continuada de testes (um teste a cada duas semanas) como solução para conciliar o isolamento e a atividade econômica.

São bilhões de dólares (10 dólares por teste, 26 vezes no ano) que, na cabeça dele e do seu grupo, garantirão a retomada da economia, da confiança, mediante o seguro controle do contágio. Prevê a mudança da pandemia em endemia, o mundo sob controle rígido do teste, mesmo que surjam a vacina e a medicação específicas. Coisa de americano. Como a que deu lugar a que um amigo rico de Kennedy, no auge do conflito com Cuba, perguntasse, sério: “E por que não se compra essa ilha?”


Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL

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