Quando era menina, a hora depois do almoço era uma hora em que eu mergulhava num tempo todo meu. Gostava de sentar nos alpendres das casas onde morava. O chão era frio dos mosaicos de ladrilho hidráulico (tão sem importância na época!), e ali me esparramava. Sentia na pele aquela temperatura fria dos desenhos em arabescos. E o mundo, literalmente, parava para mim.
Brincava de lojinha, onde eu era a dona. Já era o meu lado modista, fashionista, de gostar de loja e dos panos. Inventava os fregueses. Arrumava as coisinhas. Subia no muro da Av. Camilo de Holanda para tirar as flores do pé de Ficus. De talos cor-de-rosa e que tinha uma pele transparente que eu debulhava . Aquilo me parecia bonito, bom de brincar, e fazer coisas da fantasia.
Não gostava das bonecas. Então me deliciava com brincadeiras assim salpicadas de comércio, viagens. Já me encantava com vida de caixeiro viajante… Caminhava pela casa, rodeava o quintal, me balançava. Depois, na Praça da Independência, gostava de admirar a praça. Ver quem passava, quem namorava, a algazarra das brincadeiras. E sonhava… acordada com o que poderia viver nos bancos de uma praça!
Era tão importante para mim ficar sozinha. Sempre gostei dos momentos ensimesmada. Quem sabe isso me segue até hoje. Gosto da solidão! De ficar comigo pensando na vida ou não pensando em nada. Vem-me os flashes dos momentos vividos ou imaginados. Os bons e os não tão bons. Mas não gosto de ficar remoendo os sofrimentos. Penso neles sim. Choro com eles sim. Mas também mudo de canal com facilidade. Escolho a alegria, mesmo nas penumbras.
não tenho nenhuma dificuldade em ficar sem fazer nada; o que para mim é vital para que eu faça alguma coisaÀs vezes, quando estou na quentura do verão, e que chega depois do almoço, piso descalça no chão frio do terraço, e, enquanto me balanço na cadeira a olhar o tempo, essas imagens da infância me invadem. Os esconderijos de mim mesma. Aqueles recantos das casas onde morei e onde gostava de me esconder. Minha mãe estava sempre a fazer as coisas, meu pai no trabalho, e era o momento onde sabia que haviam esquecido de mim. Curtia esse esquecimento.
Aquietava-me pelos cantos. Nas dobras das quinas do terraço. O mormaço invadia os cômodos, mas o chão, ah! o chão era sempre friinho para que eu sentisse já as delícias do meu corpo. Hoje faço isso na minha cama, com lençóis igualmente friinhos e deslizantes. Adoro deslizar as pernas pelo branco do meu paraíso perdido.
Mais tarde, o depois do almoço era hora de um sono da bela adormecida. Parecia que tinha comido todas as maçãs! Seriam os hormônios? Talvez. Mal terminava a mesa e a minha cama me seduzia. Levava os gibis para ler, e somente com uma folha de Madame Min ou Mandrake, eu adormecia pesadamente. E ali mergulhava por toda a tarde.
O difícil era driblar os estudos, as aulas e mamãe, que achava que eu estava a vagabundar. Como explicar que dormir era viver? E no dia que não dormia, ficava sonâmbula pelos cantos, não aprendia nada, mal humorada e o corpo gemia das faltas. Até hoje sou assim. Quer me ver mal humorada? Me falte o sono. Tenho que dormir bem. E sim, tenho o hábito de dormir pelo dia. Se não for após o almoço, será ao final do dia, um momento das baixas das minhas energias.
Tenho sim a doença do sono, de sonhar acordada e de precisar do mergulho de Alice para re-energisar as minhas forças. Aquietar-me faz falta. Preciso do momento of my own. Do silêncio. E mais ainda do não fazer nada. Reconheço que não é coisa que pareça com trabalho ou vitalidade. A minha passa pelo ócio. Pelo diletante. Pela contemplação. E não tenho nenhuma dificuldade em ficar sem fazer nada; o que para mim é vital para que eu faça alguma coisa.
Hoje, quando olho de volta para a infância, me lembro tanto desses momentos, eu sozinha. Ou seja, fui sempre uma menina cheia das irmãs, das amigas, alguns namorados, das boas companhias, mas sim, preciso da minha companhia antes de tudo.
Fico tão bem quando estou reclusa nos meus pensamentos. Na minha quietude. E a imagem que guardo dessa solidão festiva é sempre a do chão frio, onde sozinha, eu sentia o prazer da pele em contato com aquela delícia e o frescor da minha dança, onde corpo e prazer se encontravam, pela simplicidade das varandas por onde morei.
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora