Nestes tempos de quarentena, além das dores, a espontânea expressão musical vem unindo o globo em torno do malfadado vírus. Em diversas formas e espaços, a nobre arte tornou-se fiel companheira na épica experiência que vivemos. Em seu conjunto, doença e música poderiam compor um filme de Quentin Tarantino, qual Django Livre, em que o conhecido diretor une cenas de atônito terror a belas e inusitadas melodias – retrato exato da pluralidade de sentimentos que nos assola.
A música daquele domingo... arrancou-me para o mundo do sonhoNo pedaço do mundo onde habito não tem sido diferente. A partir das apresentações de um talentoso vizinho, que nos presenteou com o som de seu violino, a pracinha em frente ao meu edifício virou palco de generosas apresentações. Um palco estranho, é bem verdade, já que os ouvintes continuam entocados em suas varandas, dando a falsa impressão de que não existe plateia.
Em um domingo de abril foi a vez de uma cantora lírica, que, entre populares e clássicas, fez entoar Puccini através de sua melodiosa voz. Fui dormir adolescente, cantarolando Nessum Dorma em minha mente, e naquela noite não quis saber de notícias tristes ou estatísticas assustadoras. Acordei na madrugada ainda com um recanto de sossego dentro de mim, e lembrei que a música costuma ser definida como dois sons entre um silêncio. Um som contínuo, sem o intervalo do silêncio, será qualquer coisa como um barulho; mas não será música. E somente então percebi o quanto eu estivera mergulhada na busca incessante da informação, ou da compreensão, sem me permitir o precioso intervalo do sonhar e do silêncio.
A música daquele domingo, por sua beleza e inusitada inserção, ao modo de Tarantino, arrancou-me para o mundo do sonho amenizando-me o peso do vivido, restituindo-me o espaço do pensamento e permitindo, inclusive, que me debruçasse sobre o papel do computador para escrever estas linhas.
*Variações de uma psicanalista sobre a quarentena
Sandra Trombetta é psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica do Recife