Para o verdadeiro artista, criar é mais importante do que viver. Ele não hesita em trocar festas, viagens, amores, cargos públicos por uma rotina que lhe permita se dedicar à sua arte. Aposta não no presente, mas no futuro. Prefere, ao agora, a posteridade.
Essa aposta não significa, contudo, uma garantia ou uma certeza da glória futura. Se vai “ficar” ou não – é para ele matéria de pouca importância. Nesse delicado e caprichoso terreno, quem sabe afinal quais serão os escolhidos? Como em grande parte das escolhas humanas, a imortalidade é uma roleta; e quem hoje vive consagrado pode amanhã desaparecer nas brumas do esquecimento.
Lembro-me de meu pai dizendo que no começo do século 20 as pessoas faziam fila para comprar o jornal e ler as crônicas de Humberto de Campos. Hoje ninguém o cita e quase nenhuma antologia o transcreve. Da sua obra, o que ficou (pelo menos até os meus tempos de ginásio) foi aquele texto sobre o cajueiro (lembram?).
Sempre visando à radical entrega à arte, razão maior da sua vida. Ela, e não o cristianismo, era a sua religiãoO narrador fala de um pé de caju que plantou na infância e que teve de abandonar quando foi estudar em outra cidade. Ao ir embora, choroso, contemplava por sobre os muros das casas as folhinhas mais altas da árvore acenando-lhe como se estivessem dizendo adeus. Com imagens assim, de trivial melancolia, ele conquistava os leitores da época.
Deixamos de o ler, entre outras razões, porque os tempos mudaram; hoje a nossa sensibilidade talvez queira algo menos pueril. Mas o motivo não é apenas esse, tem a ver também com o estilo. Depois do Modernismo passamos a rejeitar os períodos longos, as frases “preciosas”, a linguagem pouco coloquial – algumas das marcas desse autor.
O artista sabe que o tempo pode conspirar contra ele, mas não deixa de se dedicar ao seu ofício. Mesmo porque imagina que também existirão os elementos de uma conspiração a favor. Augusto dos Anjos, por exemplo, começou simbolista e parnasiano mas foi aos poucos “prosificando” a sua poesia. Trocou os vocábulos raros e sonoros que apareciam na lírica de um Cruz e Sousa e de um Bilac por uma mistura de termos coloquiais e científicos que na época soavam de mau gosto. Teria feito isso por intuir as diretrizes de uma estética futura ou apenas para seguir poetas como Baudelaire, Cesário Verde e Guerra Junqueira?
Talvez pelos dois motivos -- mas sempre visando à radical entrega à arte, razão maior da sua vida. Ela, e não o cristianismo, era a sua religião. Somente a arte, conforme diz em “Monólogo de uma Sombra”, “abranda as rochas rígidas, torna água/ todo o fogo telúrico profundo” e “reduz (...)/ à condição de uma planície alegre/ a aspereza orográfica do mundo”.
Ou seja: somente a criação artística é capaz de transformar o caos em ordem e de trazer um pouco de alegria ao mundo. E faz isso, basicamente, por “(esculpir) a humana mágoa”, ou seja, dar forma e sentido a um sofrimento atávico, que nos condena à dor da culpa e do qual só a Beleza pode nos redimir.
Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor