Eu trabalhava no centro, perto da Lagoa, nessa época. A Galeria Gamela era próxima dali, e fui lá pegar uma tela de Alice Vinagre, que tinh...

Coisa bonita de se ver


Eu trabalhava no centro, perto da Lagoa, nessa época. A Galeria Gamela era próxima dali, e fui lá pegar uma tela de Alice Vinagre, que tinha adquirido. Quando cheguei, uma exposição estava sendo montada. Rapazes carregando telas enormes. Uma delas "passou" por mim e eu pensei:

- Que coisa bonita de se ver!

Entrei, falei com Roseli e fui dar uma olhada naquelas pinturas, encantado.

Pintei como se estivesse vendo pelas objetivas de uma câmera fotográfica. O fundo é inspirado nas pinturas renascentistas, como na Mona Lisa.
Eu já conhecia o artista, por causas dos livros, do teatro, do cinema - A Canga; A Bátalha de Ól Contra o Gígante Ferr - e da casa dele. Por um tempinho fui vocalista do Clã de Atena, banda de rock onde Dmitri, seu filho, era baixista, e ensaiávamos lá.

- Vejo que você se interessou pelo meu trabalho!

Foi assim que Solha se aproximou e iniciamos uma conversa que nunca esqueci.

As inspirações e impressões eram do menino do interior São Paulo, que numa viagem à capital tinha se apaixonado pelas Duas Meninas de Renoir, exibidas numa vitrine, junto com um Rolls Royce.

- Eu pensei no meu desejo, ele disse, um carro daqueles não me interessava. Já a pintura...

Isso estava numa das telas, onde se via, na vidraça, o reflexo de um rapaz admirando o carro e as garotinhas vestidas de azul e rosa. Às vezes, quando lembro dessa história, fico pensando se não eram As Meninas de Velazquez... A memória faz curvas, tira, acrescenta...

A conversa estava ótima, eu mais ouvia que falava. Solha é uma enciclopédia de arte, quem o conhece sabe disso.

waldemar solha
W.J.Solha
Lá pras tantas ele me falou daquela que me arrebatou:

- Pintei como se estivesse vendo pelas objetivas de uma câmera fotográfica. O fundo é inspirado nas pinturas renascentistas, como na Mona Lisa. Chama-se "Mirabile Visu", que significa "coisa bonita de se ver", exatas minhas palavras quando a tela passou por mim. Aquilo foi um aviso (risos) de que seria minha.

Nem lembro como terminamos a conversa. Precisava voltar ao trabalho. Passei na mesa de Roseli, perguntei o valor, ela dividiu em 10 vezes e eu aguardei a exposição encerrar para recebê-la em casa. Sempre me deslumbrou.

Lembro que Lacet escreveu um artigo sobre ela. Um dia, lá em casa, eu o chamei... Lacet, vem cá que eu tenho uma surpresa pra você... Era a tela, que eu queria lhe mostrar e que ele não sabia que "morava" comigo.

Pouco tempo depois dessa compra, Roseli me ligou. Queria que eu passasse na Gamela.

- Solha deixou esse presente pra você.

Era a pintura de uma esfinge, com uma lágrima de sangue descendo de um dos olhos. Está no meu consultório. Nunca tive palavras adequadas para agradecer aquele presente. E sempre tive vergonha do meu silêncio. Um dia, numa reunião na casa de Márcia Kaplan, pedi-lhe desculpas e recebi o merecido carão.

Já se vão quase trinta anos desse acontecimento tão marcante na minha vida, Mirabile Visu me acompanha desde então, sempre perto dos meus olhos.

Feliz Aniversário, Solha! E obrigado por TUDO!

Também peço que me perdoe se o tempo adulterou a memória. É assim que lembro...


Nelson Barros é psicólogo e cronista

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Isso foi em 92. Os líderes locais da campanha contra a fome e a miséria, do Betinho, me pediram colaboração e ofereci vinte quadros,inclusive o Mirabile Visu. Como esses líderes eram colegas meus do BB, banco de que me aposentara dois anos antes, a mostra foi no saguão da agência 1817, bela curadoria de Roseli Garcia, que me avisou: "Aqui não se venderá nada". Vendeu-se UMA tela. Das menores. Roseli,então, levou a mostra pra Gamela - sua e do Altemir.Antes do vernissage, os quatro maiores quadros foram vendidos. Não me recordo do quarteto completo de compradores, mas um foi a Fundação Chalita, de Maceió, outro, o Nelson. A ideia me veio em Madri, ante um portal encimado por cavalos saltando para o vazio. Substituí os animais por um garoto nu jogando-se, extasiado, no vazio da beleza enorme de uma vasta paisagem. A originalidade maior foi que a tela é alta, de modo que se olha para cima e se vê o menino de baixo, vê-se a distância de frente, vê-se o abismo do alto, a moto do extasiado lá embaixo, numa falésia. Na encosta, um povoado ... e uma imagem inesquecível: um poste isolado, aceso, que vi na periferia de uma vila, viajando à noite , de ônibus, para Fortaleza. Tive a sorte de o resultado de tudo ter ficado em tão boas mãos.

    ResponderExcluir

leia também