Em um indefinido ano do século XX, ele ganhou uma caneca personalizada. Branca, com desenho de uma folha de plátano. Era simples. Chegou numa data qualquer, nada de aniversário, Natal, bodas. Ela simplesmente chegou.
Desembalada de seu berço de papel, a caneca foi enfileirada junto a copos vários, entre outras canecas e taças e flutes e tulipas e weisens. Como toda novidade, um estranhamento inicial até o momento da acomodação de pertencer a um lugar. Meses depois, a caneca tinha seu sítio no meio da louçaria.
A caneca foi prestigiada por ele nos primeiros momentos. Inconscientemente, ao escolhê-la, ele se conectava com a presença da dádiva. Algo que se oferta de coração é um ato de dádiva. A relação ofertar-receber impõe à coisa dada um dom. Foi o que aquela caneca se tornou: um dom.
Entrou na rotina dele. No desjejum, portando um chá, às vezes leite morno. Nunca café. Ele desde cedo detestava o cheiro do café, o gosto daquela bebida tão usual. Fazia parte das excentricidades dele.
A caneca era sua companheira de escrita. Sim, ele escrevia. Usava outro dom, o dom da palavra. A fala grafada em sujeitos, verbos, predicativos e advérbios. A escrita que assenta os pensamentos quando trai o sonho que é etéreo, solidificando-o nas notas gráficas das palavras. Ele escrevia e ela ficava ali, paradinha. Muitas vezes ele nem a tocava. E tantas vezes ele a esquecia naquele birô, por entre canetas e papéis e livros e telas.
Ele, não se sabe porquê, também a elegeu como confidente. Estava ela sempre ao lado de uma garrafa de vinho, às vezes até de um bom rum cubano, sempre ela. Ele se tornou fiel àquela caneca. Desenvolveu até uma ciumeira por ela, de modo a escondê-la de possíveis alheios. Com carinho, a lavava devagar e ternamente, nunca a abandonando no escorredor junto à louça que pingava. Nunca a colocou naquele buraco negro e barulhento, cheio de agitos mecânicos: a lava louça. Aquilo ficaria para o exército de louças do cotidiano, dos soldados da batalha diária, pois como ela não havia. O resto da louça era uma espécie de clonagem, perfeitamente substituíveis. Menos ela.
Nas noites de confidência, a caneca aprendia com ele a arte de ouvir canções. No início eram discos grandes de vinil, os quais ele, com toda paciência manejava o tirar e pôr sem nenhum arranhão. Depois vieram uns discos de prata, menores, em caixinhas de plástico, sem lado B, sem muitos cuidados. Logo após, canções que apareciam do nada, como uma mágica, sem capas, sem letras, em pendrives ou em telas. Ele revezava os goles com as canções, às vezes com uma escrita de ideias aleatórias, pois que o vinho abre portais e libera a poesia.
Muitas vezes a caneca o viu chorar no cantinho do sofá. Outras, ela observou atônita ele dançar pela sala, rindo feito uma performance de um ator de circo, daqueles dramáticos, exagerados, de puro improviso. Numa destas ele a pegou para dançar. No início era uma valsa lenta e compassada. Mas os rodopios aumentaram, e nem ela conseguiu segurar o líquido que guardava com tanto zelo até a hora de vertê-lo na boca dele. Ao parar, ele a jogou meio displicente numa mesinha de canto e ela, apavorada, girou tal qual pião na superfície da mesa até parar como uma bailarina que descobre o rodopio na ponta dos dedos.
Mas com o tempo, este devorador de gente e de coisas, a situação dos dois mudou. Ele a trocou por uma taça, daquelas sofisticadas para vinho, de puro cristal. Eram seis no conjunto, e ele as escolhia aleatoriamente. Ela olhava, com tristeza e certo ciúme, para aquele novo par.
Num dia de muita gente, as taças de cristal foram todas usadas. Ele então voltou a escolher aquela caneca, ela, já acostumada a permanecer no mundo dos vidros enfileirados. Encheu-a de vinho, logo mais de mil bolhinhas saltitantes de um prosecco barato e, finalmente, o azul-esverdeado do tiro final de absinto. Como um arremessador de peso, ele soltou a alça-mão da caneca. Ela flutuou por um momento, caindo num canto de um tapete que margeava o sofá. Desnorteada, passou a noite por ali, bem embaixo do sofá, observando apenas os pés que iam e vinham como uma procissão de gigantes. Tentou até descansar, porém algo acontecera naquela noite.
A caneca rachou.
Seus olhos pingavam também, como cenas que ela vira noites adentro, quando ela o ofertava largos tragos em meio a sons, escritos e telasPor volta de umas 8 horas, a porta se abriu e ela ouviu os barulhos da diarista. Depois de recolher algumas coisas, a diarista, num vai-e-vem de vassoura, achou a caneca deitadinha aos pés do sofá. Recolheu-a e a pôs em meio a garfos e pratos jogados, sujos de sobejos. Finalmente, a caneca foi parar no balcão mas, estranhamente longe da pia. A diarista a colocou perto da lixeirinha de pia.
Por volta das 13 horas, ele chega, ressacado, senta à mesa e pede à diarista um chá forte de boldo com carqueja, sem açúcar. A diarista assim o fez. Ele tomou aquele chá como um remédio, como um combustível para um novo dia. Sedento, dirigiu-se à geladeira tateando por uma garrafa d´água. Na volta, ao depositar o copo usado no balcão, ele a viu, a caneca ali, sozinha e tonta. Ele se aproximou dela, a olhou com aquela ternura que havia se ido pelas páginas do livro do passado. Tomou-a pela alça. Ela sentiu um pequeno incômodo, até um medo das desventuras da noite anterior.
Ele a levou para a pia, como de costume. Hora do banho. Aguinha fria e uma esponja macia. Como antes, tudo como antes. Sem que ela soubesse a razão, ele a encheu d´água até a borda. Que estranho. Levantou-a sob a luz do balcão, acima do horizonte do seu olhar. Daí o medo fez-se presença. Pingo ante pingo num pic pic soavam no aço da pia. A caneca estava rachada. Agora ela sentia isto. Por mais que ela apertasse suas paredes de louça branca, a água escorria, feito um xixi de criança que ainda não aprendeu as artes da torneirinha. Mas para a caneca não era xixi, era choro mesmo. Era a certeza do final, o destino da lixeira, um incerto destino que desconhecia até ali.
Ele também pingava. Seus olhos pingavam também, como cenas que ela vira noites adentro, quando ela o ofertava largos tragos em meio a sons, escritos e telas. Mas ele não se livrou dela. Devagar, embalou-a num pano macio, secou suas bordas, alça e superfícies.
No fundo da sala, encostadinha a volumes de Proust e Eco ela ficou. Ficou durante muito tempo, só se levantando quando alguém limpava a estante. Ela acompanhava o movimento da casa, mesmo quando chegou uma moça linda, mesmo quando as crianças chegaram, mesmo se espantando com uma bola que passou nela de raspão. Mesmo quando ela nunca mais o viu pela sala, nem ouviu mais sua voz pelos corredores que se espraiavam naquela sala agora tão vazia. Ela ficou muitos anos lá, anos que ela nem mais contava. Ela agora empoeiradinha e, como os livros, já dormida pelas horas.
A caneca e sua sabedoria de rachadura.
Pois, de certo, uma rachadura é uma cicatriz. Uma marca indelével numa superfície. Uma lembrança de um evento que definiu o ontem do amanhã. Aqueles segundos que a gente chama de destino. Aqueles tic-tacs que nos lembram que a vida seca.
A rachadura pode ser imperceptível. Todavia, quem se atreveria a tomar uma bebida quente numa caneca rachada? A rachadura é também nossas mágoas. Aquelas que insistimos em guardar em compartimentos secretos, quase esquecidos, mas que não tardam muito em aparecer e nos lembrar do tempo das misérias e dores, o tempo que gerou a rachadura.
A rachadura não é um craquelê. Um pastiche de rachaduras somente superficiais, dando um tanto de charme a um vaso ou um tampão de mesa. A rachadura fere até o osso. Ela atravessa os veios, desarma a estrutura, afoga a polidez. Ela sempre está lá, mesmo envolta em esmaltes, massas ou pinturas.
Mas a rachadura é também uma memória. Não uma memória saudosista do tempo em ela não existia, mas uma memória viva das ações que a causaram. É a rachadura uma porta para uma história, pois ela é uma descontinuidade numa experiência. A rachadura acaba com a ilusão da beleza do liso. Ela é um tropeço ao liso. Ela nos diz da quietude, da não-ação.
A rachadura marca também a nova vida. Num rompante, uma rachadura alerta da hora do nascimento quando permite que o líquido da placenta escorra avisando que vem gente nova. A bela superfície lisa de um ovo também se abre em rachaduras quando a força do nascer traz a avezinha à luz.
Somos, de certo, também rachaduras, uma vida de rachaduras. Quando o papel se racha em rasgões invisível por onde passa a tinta. Quando o arco, ao tentar rachar a corda, produz tantos acordes. Somos rachaduras quando a vida diz não e insistimos no sim. Quando uma célula se rompe e se divide em duas, em quatro, em oito, em tanto. Quando o Uno do Universo se rachou em bilhões no Big Bang. Nós, filhos do pó de estrelas rachadas de explosões cósmicas.
Não sei bem onde está aquela caneca rachada. Não importa. Ela está numa memória perdida e distante. Mas existe.
A caneca rachada sou eu.
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor