National Gallery! Para que se tenha ideia aproximada do espaço ocupado pelas 2.300 obras da Galeria Nacional, que se impõe ante a Praça Trafalgar, parei no centro dele e, ao me voltar para a série de salões a oeste, portas afora, depois para outro tanto delas a leste, eu disse:
- Ione, é como se estivéssemos diante do antigo cine Municipal e olhássemos, de um lado, para o final da Visconde de Pelotas, com a Praça Dom Adauto ao fundo, e, do outro, para o Ponto de Cem Réis, fazendo o mesmo no sentido norte-sul, numa cruz sem tamanho.
- Meu deus!
Com entrada franca, tal como no British, é comovente ver todo um mundo de gente – muita criança, muitos jovens e velhos - com acesso direto a peças de Leonardo, Bosch, Rembrandt, Renoir, Watteau, Holbein, Vermeer, Brueghel (o velho), van Eyck, Piero della Francesca, Seurat, Velázquez, Ticiano, Rubens, El Greco, Turner, Botticelli, Constable e tantos outros, grupos e mais grupos de crianças ouvindo professores dissertando sobre as mais notáveis realizações humanas, frente a frente com elas, sem as distorções das fotos, por melhores que sejam.
Por falar nisso, e para não dizer que só falei de flores, registro minha decepção ante a sombra que cobre um quadro que cultuo desde a infância: O Casal Arnolfini, de van Eyck, famoso justamente por sua nitidez... desaparecida numa camada escura criada pelo Tempo, que não me permitiu ver detalhes que eu conhecia por fotos de dez, vinte, trinta anos atrás.
Por exemplo: na parede ao fundo do retrato duplo, há um espelho curvo cuja moldura reproduz todos os passos da Paixão de Cristo. Não consegui vê-los, mesmo a dez centímetros do original. O mesmo se deu com todos os Vermeers de Londres, notabilizados por sua milagrosa manipulação da luz, mas que lá perderam essa Graça, como sem Graça me pareceu a Ceia em Emaús, de Caravaggio, célebre pela força de seu claro-escuro.
Não bastasse isso, estavam incrivelmente fanados o imenso Ninféias, de Monet, e o largo Banhistas de Asnières, de Seurat.
Já Os Embaixadores, de Hans Holbein, mantido rigorosamente claro, decepcionou-me por sua falta de ... algo especial, nele. O Adoração dos Reis Magos, de Brueghel, pelo contrário, é realmente maravilhoso, como é maravilhosa a nudez da Vênus no Espelho, de Velázquez;
a paisagem ao fundo de O Carro de Feno, de Constable; a geométrica precisão do Batismo de Cristo, de Piero della Francesca; o azul do céu ao fundo do Baco e Ariadne, de Ticiano; as cores intensas de Rubens em seu Sansão e Dalila; os detalhes milimétricos da natureza-morta As Vaidades da Vida Humana, de Harmen Steenwyck; a névoa diáfana das grandes distâncias por trás do Casamento de Isaque e Rebeca, de Claude Lorrain; o impressionismo-antes-da-hora de Turner, etc, etc.
E veja como são as coisas: há dois autorretratos de Rembrandt na Galeria Nacional: um em que ele está com 34 anos, do qual fiz uma cópia há tempos, outro em que ele está com 63. Pois bem, desinformado, esforcei-me, no simulacro que fizera, para emular a técnica que o mestre adquirira apenas no final da vida, e o resultado foi que não gostei do original... apagado... mas em compensação me comovi intensamente com o registro que ele deixou da própria face na velhice, poderosamente densa e triste.
Apenas um museu como esse poderia, desse modo, oferecer tanto...
W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta