O rapaz se chamava Josué e tinha cavalgado quatro léguas para assistir a primeira missa do domingo na Matriz de Nossa Senhora das Mercês. Era uma manhã deserta e silenciosa porque não havia ninguém pelo caminho e também porque nada parecia importar, a não ser os pensamentos que lhe martelavam o coração, assim como os cascos do cavalo nas folhas secas do terreno arenoso. Nem a beleza da névoa azulada que pouco a pouco se dissipava através dos galhos e folhagens das árvores que margeavam a estrada parecia importar. E nem mesmo o último mata-burros sombreado por frondosas algarobas e touceiras de aveloses que chamavam a atenção pela exuberância e onde havia uma casa secular com janelinha perto da cumeeira e telhado com chaminé, parecia importar.
As lembranças varreram sua existência, desde o tempo que ajudava ao pai a tocar as tropas de jumentos carregados com algodão, leite e farinha de mandioca para a feira de Araruna até os casos de pouca importância como apartar briga em mesa de jogo e correr atrás de rês dentro de mato fechado. Desses pensamentos gostava, pois serviam de conforto para a canseira e a tristeza que já tinham o tempo de dois meses e quinze dias, que eram o motivo de ter voltado a beber, a procurar as rezas de Inácia da Lagoa das Emas e a ceder ao pedido de uma tia para assistir a missa de Nossa Senhora das Mercês em Cuité.
Josué afastou os pensamentos e olhou para o avelós, admirou o verde intenso e o balanço calmo da ramagem. Era uma planta resistente, que aguentava ventania, quentura, tempo ruim. Então se comparou com o avelós, não por esse motivo, mas porque pegava fácil, tinha raiz funda e que bastava um corte, pequeno que fosse, no tronco e nas folhas, para escorrer o que mais parecia pranto. E foi ali que ele voltou a pensar nos acontecimentos recentes...
Os ruídos de grilos e outros bichos invisíveis quebravam a quietude da vegetação numa noite tão escura e tão limpa de nuvens que as estrelas pareciam ocupar todos os cantos do céu. Josué fechou um cigarro de palha de milho seco e foi sentar-se no pequeno lajeiro existente no terreiro que servia de quarador. Olhou para o alto, lembrou de fazer uma prece, pensou no pai, nas coisas que deixou para ele. Quando conheceu Mariana e disse que ia casar, o pai lhe deu a terra de herança. Mas o lugar era mato somente, nem cerca tinha. Agora estava muito diferente. Tinha cultivo, curral, trinta reses, outras criações menores, uma casa bonita, bem feita, construída por ele mesmo. E porque Mariana pediu, botou sala ampla e bem iluminada, janelas em todas as paredes, alpendre pro nascente. Na entrada, dum lado e doutro, fez jardim colorido com roseiras e outras flores, e fez ainda um banco de lastro de aroeira para ela sentir o cheiro das flores e ver a lua quando apontasse na serra. Era um homem realizado, tinha família, um filho que não era seu mas era mesmo que ser, porque pai é quem tem sentimento, quem cria e ensina.
Ele imaginou todas essas coisas naquela noite, e foi dormir pensando nuns animais desgarrados que precisava recuperar na manhã seguinte. Acordou cedo, como de costume, tomou café, selou o cavalo, e antes de sumir na vereda do curral, voltou os olhos para trás. Mariana estava na janela e acenou para ele. Josué sabia do seu amor por ela e que ia voltar antes do pôr do sol, o que ele não podia imaginar é que aquela era a última vez que olhava para Mariana.
Retornou pelo entardecer e de longe viu a chaminé sem fumaça, as janelas fechadas, até mesmo a porta da cozinha que Mariana costumava trancar somente depois que escurecia. Foi desselar o cavalo na cocheira e viu que a égua não estava no curral. Então entrou em casa desesperado sem entender o que havia acontecido. Encontrou perto do fogão um bilhete agradecendo por tudo, pedindo desculpas e dizendo para lhe esquecer porque não ia mais voltar. Soube no dia seguinte que tinha pegado um transporte para Guarabira, e de lá o trem para a Capital, de onde partiria com o filho para a distante cidade de São Paulo.
Josué parou diante da igreja, e antes de entrar tirou o chapéu e se benzeu, imitando os gestos dos fiéis. Não era chegado à missa e nem de muita reza, mas tinha fé e considerava o temor a Deus como o melhor caminho para um cristão reparar seus pecados. Acomodou-se no último banco e ficou a observar os santos e as colunas que se repetiam até o altar. Acima havia uma imagem do Cristo crucificado que lhe transmitia dor e resignação, um sentimento semelhante ao seu. Então as lembranças recentes voltaram e agora carregadas de um peso ainda maior, porque as feridas do Senhor na cruz tinham refletido em seu peito e porque começava a sentir um aperto pior do que o desânimo. Mas esses pensamentos logo se desfizeram porque, de repente, o padre surgiu através da cortina de uma porta lateral e se dirigiu à mesa do altar, dando início ao sermão.
O padre falou que a vida era cheia de acontecimentos indesejáveis e que esses infortúnios sempre iam estar presentes no caminho de cada cristão, e que nenhum pecador tinha sofrido tanto quanto Cristo que morreu para nos salvar, para nos libertar, mas que a libertação do espírito dependia do exercício do perdão.
As lembranças de Mariana retornaram... Sem uma mulher a existência tinha perdido o sentido... A terra estava sem dono... o mato tomando de conta, o gado descuidado, as criações menores atiradas à própria sorte. Mas nada se comparava à esquisitice da casa, entregue à penumbra desde a tarde em que encontrou tudo fechado. Depois que o soluço estancou nenhum som ali foi ouvido e não demorou para começar um cheiro azedo nos móveis e nos recantos das paredes vindo do mofo pela falta de vento e de luz e que tinha ficado tão insuportável que ele voltou a abrir algumas das janelas para o ar circular.
Uma moça sentou-se no outro lado do banco, despertando Josué. Olhou de lado, para onde ele estava, mirou em seus olhos e sorriu. Desconsertado, ele retribuiu o sorriso. O padre continuou com o discurso.
...que a dor fazia parte da vida, mas não o sofrimento permanente... este era opção, escolha nossa. A dor nos torna vivos... A vida não se limita às derrotas passadas, e não podemos ficar ruminando as dores como um animal desolado, nem remoer a tristeza como a cantiga de uma carroça velha... Um coração amargurado é uma alma cansada pelo fardo pesado do ressentimento...
O padre parecia discursar para Josué, como se conhecesse seus desalentos, sua angústia, o rancor. Jesus tinha o poder de perdoar seus inimigos e esquecer o sofrimento; ele não. Nunca seria capaz de perdoar Mariana, apagar de dentro de si aquele dissabor que não parava de arder como pedras num braseiro.
Mas a moça voltou a olhar para Josué, e também voltou a sorrir, um riso breve, mas de graça, e tão doce como o doce da cana de açúcar... O rosto alvo e macio o fez imaginar os capuchos de algodão que costumava colher em período de boa safra. Sem se dar conta, as palavras do padre, que antes imaginava ditas para ele, foram se distanciando, tanto que Josué somente percebeu que os fiéis haviam se levantado para o momento da comunhão porque a moça também se levantou, e mesmo sem nunca ter comungado na vida, ele ergueu-se e entrou na fila, não por decisão própria mas pelo gesto dela meio que perguntando por que ele não ia.
Josué voltou para casa no meio da tarde. O percurso de volta não era tão extenso assim e houve tempo para tudo, inclusive para contemplar o azul cobalto das serras distantes, descansar na sombra das frondosas algarobas e contemplar a beleza da casa com janelinha perto da cumeeira de telhado com chaminé.
Muitas coisas aconteceram naquela semana que demorou uma eternidade para passar. Ele arrumou a casa e abriu as janelas, limpou o mato em derredor e cuidou do jardim, que logo revigorou, fazendo surgir as primeiras flores. Era tempo de lua e as estrelas pareciam ocupar todos os pontos e cantos do universo, mas aquilo não importava porque o céu do seu mundo estava muito mais iluminado do que o mundo que havia no céu...
As andorinhas se espantaram com o badalar ensurdecedor dos sinos da Matriz chamando os fiéis para a primeira missa do domingo. Josué entrava na cidade e viu as andorinhas esvoaçando, riscando a atmosfera com as asas, como se brincassem de liberdade... Então ele imaginou que a felicidade devia estar no que não podia ser visto nem tocado, e não importava o que acontecesse porque a gente sempre ia encontrar motivos para se alegrar, amar, perdoar e ser feliz.
Célio Furtado é artista plástico e cronista