O rapaz se chamava Josué e tinha cavalgado quatro léguas para assistir a primeira missa do domingo na Matriz de Nossa Senhora das Mercês. Era uma manhã deserta e silenciosa porque não havia ninguém pelo caminho e também porque nada parecia importar, a não ser os pensamentos que lhe martelavam o coração, assim como os cascos do cavalo nas folhas secas do terreno arenoso. Nem a beleza da névoa azulada que pouco a pouco se dissipava através dos galhos e folhagens das árvores que margeavam a estrada parecia importar. E nem mesmo o último mata-burros sombreado por frondosas algarobas e touceiras de aveloses que chamavam a atenção pela exuberância e onde havia uma casa secular com janelinha perto da cumeeira e telhado com chaminé, parecia importar.

Josué afastou os pensamentos e olhou para o avelós, admirou o verde intenso e o balanço calmo da ramagem. Era uma planta resistente, que aguentava ventania, quentura, tempo ruim. Então se comparou com o avelós, não por esse motivo, mas porque pegava fácil, tinha raiz funda e que bastava um corte, pequeno que fosse, no tronco e nas folhas, para escorrer o que mais parecia pranto. E foi ali que ele voltou a pensar nos acontecimentos recentes...

Ele imaginou todas essas coisas naquela noite, e foi dormir pensando nuns animais desgarrados que precisava recuperar na manhã seguinte. Acordou cedo, como de costume, tomou café, selou o cavalo, e antes de sumir na vereda do curral, voltou os olhos para trás. Mariana estava na janela e acenou para ele. Josué sabia do seu amor por ela e que ia voltar antes do pôr do sol, o que ele não podia imaginar é que aquela era a última vez que olhava para Mariana.

Josué parou diante da igreja, e antes de entrar tirou o chapéu e se benzeu, imitando os gestos dos fiéis. Não era chegado à missa e nem de muita reza, mas tinha fé e considerava o temor a Deus como o melhor caminho para um cristão reparar seus pecados. Acomodou-se no último banco e ficou a observar os santos e as colunas que se repetiam até o altar. Acima havia uma imagem do Cristo crucificado que lhe transmitia dor e resignação, um sentimento semelhante ao seu. Então as lembranças recentes voltaram e agora carregadas de um peso ainda maior, porque as feridas do Senhor na cruz tinham refletido em seu peito e porque começava a sentir um aperto pior do que o desânimo. Mas esses pensamentos logo se desfizeram porque, de repente, o padre surgiu através da cortina de uma porta lateral e se dirigiu à mesa do altar, dando início ao sermão.

As lembranças de Mariana retornaram... Sem uma mulher a existência tinha perdido o sentido... A terra estava sem dono... o mato tomando de conta, o gado descuidado, as criações menores atiradas à própria sorte. Mas nada se comparava à esquisitice da casa, entregue à penumbra desde a tarde em que encontrou tudo fechado. Depois que o soluço estancou nenhum som ali foi ouvido e não demorou para começar um cheiro azedo nos móveis e nos recantos das paredes vindo do mofo pela falta de vento e de luz e que tinha ficado tão insuportável que ele voltou a abrir algumas das janelas para o ar circular.
Uma moça sentou-se no outro lado do banco, despertando Josué. Olhou de lado, para onde ele estava, mirou em seus olhos e sorriu. Desconsertado, ele retribuiu o sorriso. O padre continuou com o discurso.
...que a dor fazia parte da vida, mas não o sofrimento permanente... este era opção, escolha nossa. A dor nos torna vivos... A vida não se limita às derrotas passadas, e não podemos ficar ruminando as dores como um animal desolado, nem remoer a tristeza como a cantiga de uma carroça velha... Um coração amargurado é uma alma cansada pelo fardo pesado do ressentimento...
O padre parecia discursar para Josué, como se conhecesse seus desalentos, sua angústia, o rancor. Jesus tinha o poder de perdoar seus inimigos e esquecer o sofrimento; ele não. Nunca seria capaz de perdoar Mariana, apagar de dentro de si aquele dissabor que não parava de arder como pedras num braseiro.

Josué voltou para casa no meio da tarde. O percurso de volta não era tão extenso assim e houve tempo para tudo, inclusive para contemplar o azul cobalto das serras distantes, descansar na sombra das frondosas algarobas e contemplar a beleza da casa com janelinha perto da cumeeira de telhado com chaminé.

As andorinhas se espantaram com o badalar ensurdecedor dos sinos da Matriz chamando os fiéis para a primeira missa do domingo. Josué entrava na cidade e viu as andorinhas esvoaçando, riscando a atmosfera com as asas, como se brincassem de liberdade... Então ele imaginou que a felicidade devia estar no que não podia ser visto nem tocado, e não importava o que acontecesse porque a gente sempre ia encontrar motivos para se alegrar, amar, perdoar e ser feliz.
Célio Furtado é artista plástico e cronista