Esta historinha me foi contada pelo saudoso Dr. Pedro Cardoso Filho, então estagiário no Hospital Municipal de Pronto Socorro. Trata-se de uma pequena amostra da personalidade fascinante que é o Dr. João Batista Mororó, figura humana ímpar, dotado de profundo sentimento religioso, preocupado com a alma de uma pessoa que tinha sido infeliz na vida, tentando dar o melhor para os pobres e oprimidos. Ele trata todo mundo carinhosamente por nêgo ou nêga. Eu acho que é uma técnica para não esquecer o nome de ninguém, igual ao que fazia o padre Juarez Benicio Xavier!
Nos anos 50 até os 70, o velho Pronto-Socorro localizava-se na Rua Visconde de Pelotas, esquina com a Rua Miguel Couto.
À época, por muitos anos, os titulares dos plantões eram sempre luminares da nossa medicina, que viriam a tornarem-se nossos professores: Aquiles Leal, Humberto Nóbrega, Herul Sá, Genival Veloso, Orlando de Farias, entre os mais lembrados. E entre estes o nosso querido mestre João Batista Mororó, que todo dia de São João inaugura uma nova idade.
Num fim de tarde, num sábado, chegou ao Pronto-Socorro um carro-de-praça (que era como chamavam os táxis de então) com um estudante secundarista do Lyceu Paraibano trazendo lá da zona do meretrício uma mulher-da-vida.
Esta tinha sido esfaqueada pelo seu cafetão, quando dançava com o estudante, no cabaré. Crime de ciúme, crime de sangue! O carro estava todo ensanguentado. A mulher, desfalecida, branca, morrendo por anemia aguda. O estudante estava apavorado.
Dr. Mororó, homem sábio e médico experiente, deu ordens para cateterizar uma veia e instalar sangue, e disse para uma enfermeira chamar urgente o cirurgião de plantão e, por quê não?, o capelão do hospital.
O cirurgião chegou primeiro, deu as suas ordens, complementando a conduta do Dr. Mororó, e foi se lavar para a operação. O estudante, pálido, assistia a tudo aquilo, horrorizado.
Logo em seguida chegou padre Félix, o capelão, para dar a extrema-unção. Perguntou ao estudante se era o marido da paciente, tendo ele rispidamente respondido que NÃO! Então, uma das enfermeiras cochichou no ouvido do padre que a mulher não tinha maridos, morava no cabaré e levava vida irregular.
Pra que ela disse isto?? O padre então se recusou a dar a extrema-unção! Ocorre que, à época, a Igreja era muito rigorosa, o Papa João XXIII ainda não a tinha modernizado com as suas encíclicas. Não adiantaram os apelos dos presentes.
Dr. Mororó implorou. O padre, porém estava inarredável. A Igreja era clara: a ausência do sacramento do matrimonio lhe impedia de abençoar a infeliz com o ministério da extrema-unção.
A situação caminhava para o insolúvel, quando o Dr. Mororó teve uma idéia. Perguntou ao sacerdote pausadamente, quase que soletrando: “Padre, se ela se casasse agora, o Senhor daria a extrema-unção?”
O padre ficou numa saia-justa. Respondeu, muito reticente: “É, desapareceria o impedimento e eu poderia administrar-lhe o ministério...”
Dr. Mororó voltou-se, então para o secundarista, e disse, candidamente: “Casa com ela, nêgo!”
O estudante indignou-se, pois era pobre, do interior, mas era de família religiosa, decente, o que o impedia de casar-se com uma prostituta:
“Caso NÃO!!”
Dr. Mororó insistiu: “Nêgo, você casa com ela, o padre dá a extrema-unção, ela vai se operar, morre, e você fica livre e desimpedido para casar de novo. Casa, nêgo..!”
“Caso não! Casa tu!!”
“Eu já sou casado, nêgo. Se eu pudesse, faria este gesto.”
“Num caso de jeito nenhum.”
Dr. Mororó insistiu: “Nêgo, faz esta caridade celestial!”
“Faço não!”
Mororó, homem perspicaz, profundo conhecedor dos mistérios da alma, usou da psicologia médica. Disse para o estudante: “Nêgo, se tu não casa com ela, ela morre, e vai voltar à noite pra puxar teu pé.”
O jovem já não respondeu. Olhou a paciente inconsciente estirada na maca, chocada, da cor do lençol. Pensou um pouco. E perguntou ao Dr. Mororó: “O Senhor tem certeza que ela vai morrer?”
“Tenho, sim, nêgo! Ela não resiste à anestesia geral!”
Assim, relutantemente, o estudante concordou. O padre casou os dois. Dr. Mororó e o então acadêmico Dr. Pedro Cardoso Filho foram testemunhas. Logo a seguir, deu a extrema-unção e retirou-se, exausto e um pouco confuso. Afinal de contas nunca tinha presenciado um caso semelhante.
A paciente foi finalmente levada para a sala de cirurgia, onde foi operada de urgência, perdendo o baço rasgado pela navalha do cafetão. E escapou!!
O estudante jurou de morte o Dr. Mororó, que prudentemente mudou de plantão.
José Mário Espínola é médico e escritor