Não entendo de poesia, apenas gosto. Desde adolescente folheava com volúpia a coleção completa dos Sonetos de Shakespeare que estava sempr...

A arte de sentir a arte

germano romero sonets shakespeare

Não entendo de poesia, apenas gosto. Desde adolescente folheava com volúpia a coleção completa dos Sonetos de Shakespeare que estava sempre a me acenar na biblioteca de papai, como se me lembrasse: “aqui você encontra a paixão das coisas todas”.

Era um jardim encadernado de flores e espinhos, dores e amargura, prazer e paixão, no qual o autor esculpiu em letras o perfume ardente e apaixonado da vida na mais grandiosa eloquência. A ponto de dizer que: “Nos olhos das estrelas se entende a Arte e neles toda a beleza e a verdade findam!”

Era o mesmo deleite que papai sentia na Música. Ele nunca entendeu a diferença entre uma fusa e uma colcheia
Quem precisa conhecer formalmente a poesia para entender o amor que está lapidado no coração de alguém que a outro diz “Os meus olhos desenharam a tua forma, e os teus, para mim, são as janelas em meu peito por onde o Sol deleita-se em admirar, vendo-te dentro de mim”?

E não era só a paixão que me enfeitiçava nos sonetos de quase 500 anos. Era tudo. A profundeza filosófica, a tragédia, o drama – no que o autor foi insuperável. Capaz de suavizar a dureza das verdades com a doçura dos versos, para falar da crueldade do tempo e de sua efemeridade: “Os dias firmam seu passo na juventude. E cavam suas sendas sobre a fronte da beleza; Alimentam-se da raridade da natureza, mas nada impede o firme corte de sua foice.”

Aristóteles fez uma tipologia das mais perfeitas a respeito da tragédia. E ele estava preocupado exatamente com a recepção
Nem sequer eu sabia das métricas, pois só lia, dos sonetos, as traduções. Embora a coleção fosse bilíngue, de fácil cotejo, eu desejava sorvê-los na rapidez do sentimento sem esforço.

Era o mesmo deleite que papai sentia na Música. Ele nunca entendeu a diferença entre uma fusa e uma colcheia, nem identificava em quantas ou em quais vozes a melodia percorria as fugas de Bach. Mas as sentia em ecos enebriantes que lhe regozijavam a alma. E assim, conhecia e dominava até mais profundamente a história e a literatura musical distinguindo a essência dos estilos e da personalidade de cada compositor que admirava, do que certos doutos especialistas na Divina Arte.

Saber é sentir. Mais do que conhecer. Amando se entende mais do que estudando. A técnica é fria, aritmética. O sentimento é doce, volátil, sublima-se no enlevo que produz nos que sentem as sutilezas e entrelinhas da música e da poesia.

milton marques jjunior
Milton Marques
A propósito desta estesia, em boa conversa com o amigo e professor de Letras Clássicas, Milton Marques Júnior, ele me falava sobre a arte de sentir a arte:

“Germano, quem gosta de poesia não precisa saber nada de sua técnica. Basta senti-la. A arte é assim. Arte é estesia. Você não precisa conhecer os mecanismos da arte, basta que a estesia, a sensação repercuta em você. Há 2.500 anos, Aristóteles fez uma tipologia das mais perfeitas a respeito da tragédia. E ele estava preocupado exatamente com a recepção - Como é que o público recebia a tragédia. Como é que se acolhia um texto que é ao mesmo tempo literário e dramático. E nessa recepção, ele dá uma orientação a quem quer ser poeta, quem quer ser escritor, dizendo uma frase muito simples, mas que ficou na memória de quem estuda literatura: ‘O poeta não é o fabricante de metros, mas o fabricante de mitos’. Porque o mito, a fabulação, a poesia que existe na construção narrativa ou poética, isso é que é o mais importante. Mais do que o metro, a ossatura ou de qualquer outra coisa. Ou seja, o importante na poesia é a essência e não o esqueleto”. E arrematou: Sentir a Arte é aprendê-la com a alma”.


Germano Romero é arquiteto e bacharel em música

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Muito bom. As artes têm, realmente, esse dom de fascinar sem que se precise delas entender. Nos 15 dias que passei na Espanha, 8 foram dentro do Museu do Prado. Impressionei-me com sucessivas caravanas de todas as nacionalidades que vi parando ante o Las Meninas, do Velásquez, dizendo Óóó! Mas o que me parece ainda mais fascinante é que, quando nos acercamos de cada obra de arte com meios de compreendê-la, nosso deslumbramento é ainda maior. Eu e o Marcus Villar fomos, no início do milênio, convidados a exibir o curta A Canga a pessoas ligadas a uma igreja de Cruz das Armas - gente simples. Impactaram-se. Mas sua empolgação cresceu ao ver, depois, o making of do filme. Como foi bom ver que o chute que dou no ventre da nora grávida, na verdade foi num cavalete almofadado, atrás do qual estava a câmera! Como foi bom trocar e-mails com Ivo Barroso sobre a tradução que ele fez da chave de ouro que encerra o Soneto 65, de Shakespeare! Como foi bom assistir à defesa de tese, do João Batista de Brito, sobre os signos e imagens em Castro Pinto! Como foi bom ver Kleber Mendonça Filho explicando, pra mim e pra Irandhir Santos mais Sebastião Formiga, como a sequência em que pegam um elevador, vão a meu apartamento e me matam - em O Som ao Redor - tem a ver com a que o "replicante" do filme Blade Runner pega o elevador e vai ao apartamento do seu criador, matá-lo.

    ResponderExcluir

leia também