“Se Deus quiser”. Não encontramos outra expressão que possa substituir um “Se Deus quiser”. Quando dizemos para nosso interlocutor que dará tudo certo, é inevitável que ele diga “Se Deus quiser”. Poderia ser um “tomara”, um “oxalá”, mas nenhuma delas tem a força de um “Se Deus quiser”. “Graças a Deus” também é expressão insubstituível. Quando dizemos que deu tudo certo, o interlocutor, como que um autômato, dirá “Graças a Deus”. Poderíamos substituir o “Graças a Deus” por um “felizmente” ou mesmo um “ainda bem”, mas da mesma forma não teria o mesmo efeito mágico. Um “Se Deus quiser” ou um “Graças a Deus” elevam os problemas humanos a um patamar divino, afinal de contas Deus estará diretamente, sem subalternos, envolvido no caso.
Na primeira hipótese, a do “Se Deus quiser”, como o evento futuro é incerto – por óbvio –, parece que nos livramos das responsabilidades. Entregamo-las nas mãos da providência. Deus – o leitor poderá substituir Deus por qualquer outra divindade em que acredite, seja Ogum, Santo Antônio, Odin etc. – é o maior álibi do ser humano. Com Ele o homem tira de suas costas o fardo da responsabilidade pelo que está por vir. Atribui a Deus tal ônus. No segundo, o do “Graças a Deus”, o homem, que já havia imposto a Deus toda a responsabilidade pelo que poderia ocorrer, humildemente agradece-Lhe pelo evento favorável. Mas se Deus não cumpriu bem o seu papel aparecerá a terceira expressão insubstituível: “foi Deus quem quis assim”, e voltamos a impor-Lhe responsabilidades pelo que se sucedera. – Pobre menino, estudou tanto, mas não passou no vestibular. Foi “Deus quem quis assim”, dirão. E o garoto, que ocupou o tempo de Deus com seus exames de admissão, terá uma nova chance no ano que vem.
Esse Deus-álibi é uma das duas causas que nos levam a crer em divindades. O homem, enquanto não descobre a realidade irrefutável de alguma coisa, atribui a Deus sua causação. Isso porque não nos conformamos com a incognoscibilidade dos fatos. Tudo tem que ter uma explicação, nem que seja mística. Daí que, ainda hoje, para alguns povos indígenas, relâmpagos e trovões mais que fenômenos climáticos são expressões de sentimentos de deuses. Isso explica também porque enquanto não se provar por a mais b a teoria da evolução das espécies e a de que o universo nasceu de uma grande explosão, existirão pessoas acreditando que nossos avós foram Adão e Eva e que o mundo foi feito em uma semana, pois assim se estaria, metafisicamente, explicando o que ainda não tem explicação racionalmente convincente.
A segunda causa da fé é o nosso medo da morte. Teimamos em desacreditá-la, apesar de termos-na como companhia desde sempre. Conquanto algumas pessoas dispensem a burocracia da natureza e dêem cabo da vida, principalmente da dos outros, por conta própria, pensar que tudo termina quando aquele músculo chamado coração deixa de bombear sangue para o resto do corpo não é idéia com que o homem possa se acostumar. Daí vem a crença na longevidade do espírito em contraposição a efemeridade do corpo. A morte é vírgula e não ponto final, pensamos. Não é agradável crer que tudo acaba com o cerramento dos olhos. Então estendamos nossa vida para além dela. Um juízo-final e pronto, lá estaremos novamente, aptos para a vida eterna. Desencarnar? Sem problemas, a reencarnação está aí para voltarmos.
Não é agradável crer que tudo acaba com o cerramento dos olhos.Gostaria de crer que existe um paraíso a esperar-me, depois de uma temporada expiando pecados no purgatório, e que lá reencontrarei quem me é precioso. E várias virgens, se a crença for mulçumana. Ou que meu espírito caminha em progressão, e que voltarei para esse mundo ou um outro, até minha alma chegar num estágio avançado de evolução. Seria bom acreditar no “Pai Danguê” e que ele, após um pequeno “trabalho”, afortunar-me-ia com a mulher que amo e mostrar-me-ia quão inúteis foram meus galanteios e gracejos não correspondidos. A solução estava logo ali, embaixo do nariz, num simples jogo de búzios e numa oferenda de perfumes e guloseimas a Iemanjá. Quem sabe crendo numa dessas igrejas novas, após participar da sessão do descarrego ou da vigília dos 318 pastores, eu não encontraria a felicidade nos negócios, agora, já, ainda nessa vida. Ou poderia tornar-me adepto do hinduísmo e cultuar uma vaca ao invés de devorá-la – pelo menos para o pobre bicho seria uma redenção. Mas acredito apenas na capacidade humana de desvendar através da razão. O que não se descobriu, um dia se descobrirá através do conhecimento racional.
Porém, não tenho como caro esse meu posicionamento puramente cético. Não desprezo a fé no ser humano, desde que isso não implique em proibir o uso de anticoncepcionais, no preconceito contra homossexuais, mulheres e principalmente contra outros cultos – ou na descrença neles, na vedação do sexo por prazer, na aversão ao avanço da ciência, na imposição de uso de vestimentas... Compreendo que necessitamos do Deus-álibi para explicar as lacunas do conhecimento humano e para fugir do tormento do inevitável fim da vida. A crença em divindades cumpre esse papel. A religião, o culto, a fé são necessárias ao inquieto e amedrontado homem. A inexorável morte, como a todos, também não me é bem-vinda.
Douglas Antério é advogado e escritor