Estava a reler o belo romance do suíço Pascal Mercier “Trem noturno para Lisboa” (tradução de Kristina Michahelles, Editora Record) e me detive, à página 213, na inquietação e na angústia que assaltaram o personagem Jorge, no meio da noite, quando tomou consciência de que não haveria mais tempo para ele aprender a tocar o piano que, num impulso, comprara recentemente. “O piano de cauda – desde essa noite, ele me lembra que existem coisas que eu não vou mais ter tempo de fazer”, diz Jorge, para continuar: “Não se trata de pequenas alegrias insignificantes e prazeres fugidios, como engolir um copo d’água num dia de calor e poeira. Trata-se de coisas que desejamos fazer e experimentar porque só elas podem dar um sentido completo a esta nossa vida muito particular, e porque sem elas a vida permaneceria incompleta, um torso e mero fragmento.”.
Quem já, a partir de certa fase da vida, não experimentou tal desgosto, para não dizer tal tormento? São todos os sentimentos que afloram a partir da consciência da finitude, da brevidade e da precariedade de nossa existência. Simplesmente, de repente, de alguma forma sabemos que não teremos tempo para tudo que desejamos, para tudo que gostaríamos de vivenciar no tempo mais ou menos curto de nossa passagem pelo mundo. Que restarão sempre coisas que não serão feitas, experiências que não serão vividas, ou seja, que o que poderemos degustar da vida será sempre aquém de nossa fome, razão mais do que suficiente para inquietações e angústias. Ou não.
É verdade: ou não. Pois poderia ser de outra forma? Haverá porventura alguma vida plena, totalmente realizada, a ponto de não restar nada a concluir, nenhum desejo e nenhum sonho a satisfazer, alguma frustração, mínima que seja, que é a marca mesma de nossa limitada humanidade?
Alguém falou que deveríamos ter duas vidas: a primeira como ensaio; a segunda pra valer, sem apelação. Concordo. Mas sabendo que ainda assim seria pouco e que na segunda vez, mesmo com todo o suposto aprendizado anterior, ocorreriam erros, omissões e incompletudes. Como se diz, será sempre pouca vida para tanta arte.
O remédio, se remédio há, não pode ser outro senão aceitar com sabedoria e resignação essas tais incompletudes, inevitáveis que são. Aceitemos que sempre haverá um intocado piano na sala de todos nós, “monumento negro ao sonho irrealizável de uma vida plena”.
E o melhor de tudo, suprassumo da sapiência, seria nem mesmo chegar a comprar o tal piano. Saber logo, sem ilusões, e de uma vez por todas, que não teremos tempo de aprender a tocá-lo. Não nessa vida única, sem segunda chance, que nos cabe.
Francisco Gil Messias é ex-procurador-geral da UFPB