Há dez anos eu estava prestes a concluir uma etapa importante da vida, meu doutorado. E para escapar da angústia da pressão interior, depois de um dia de trabalho, eu ficava navegando na internet olhando lindas paisagens. E assim me deparei com uma fotografia da pequena cidade baiana de Mucugê. No dia seguinte falei para o meu filho: “vamos para Mucugê?”. Então com 7 anos me perguntava: “o que é isso mamãe?”. Respondia: um lugar lindo!!!!!!
Quando dizia vamos para Mucugê aspirava profundamente deixar os papéis, as ideias, as pressões, o cansaço, o vazio, a solidão, a cobrança interna, o labirinto dos livros que lia, todas as teorias, sair correndo, colocar a mochila nas costas e partir. Mas naquele momento da vida não era possível. Meses depois, concluí o doutorado e, logo em seguida, assumi outras responsabilidades.
Esperei longos anos por motivos sérios ou banais para pegar o rumo sentido Chapada Diamantina. Eu que tenho uma quase devoção por cachoeiras e sou tomada por forte emoção quando vejo uma. Assim foi na Chapada dos Guimarães, ou no Roncador e Ouricuri. Penso que onde tiver uma cachoeira ali estará um pouco de minha alma.
O que pude descobrir recentemente na Chapada Diamantina foi um caminho de retorno para dentro de mim. Não que houvesse me deixado, ao contrário, me conjugo no tempo presente. Só que me senti como o protagonista do livro “Jemmy Button: o menino que Darwin levou de volta para casa” (Jeneffer Uman, Alix Barzelay e Valerio Vidali. Ed. Pequeno Zahar, 2013). O personagem, nascido na Terra do Fogo, foi “levado” para a Inglaterra para ser “civilizado” e “educado”, por uma expedição que trouxe Darwin a América do Sul. O final desse livro que não vou contar, é um dos mais lindos finais de livros que já li. E na singularidade de um livro infanto-juvenil ele nos diz dos lugares mais profundos que existem dentro da gente, por vezes adormecidos, esquecidos. Que estão e estarão sempre lá, mesmo que a gente feche a porta e engula as chaves. Esse lugar nunca vai deixar de existir.
A gente pode até passar dez anos para poder abrir uma porta novamente, só que as frestas vão se formando, encontrando os lugares de ruptura e espalhando luz. Chegar recentemente na Chapada Diamantina foi uma jornada, não a do herói de Joseph Campbell. Foi uma trilha de volta a um lugar existente sempre, só que submerso por vezes numa total escuridão. Tão simples: meus pés alados, e as paisagens se movendo pelas “janelas do carro, pela tela, pela janela”… e tudo de mais singular acontecendo nesse movimento subjetivo, indivisível. Ou não acontecendo nada, simplesmente existindo sem mais nem menos, assim como anoitece e amanhece.
E sabe que no trajeto até desisti de ir, nesse momento, a Mucugê, só para ter uma razão para voltar. Fui fazendo outras trilhas, caminhos que custam descrever porque as palavras nesse momento não alcançam a profundidade desse poço que voltei a mergulhar. Assim fui percorrendo as cachoeiras, os rios, as cavernas, com “o sol na cabeça”.
Na primeira Lua Cheia do ano, não temer a mata. Estar na noite, em silêncio, escutando as águas como se fossem parte de minhas veias. Inundada no azul-marinho do céu, observando a Constelação de Órion. Tocando com meus pés pedras milenares, torneadas pelas águas, ora duras, ora macias, frias e suaves, que formavam um mosaico que nunca Gaudí alcançou compor.
Não era estranho, era um lugar de retorno, mesmo sendo um espaço onde nunca estivera. Aparentemente. Nesse processo evolutivo, muito do que somos está em tantos lugares espalhados Universo a dentro, mundo afora. E mesmo que tudo possa parecer um déjà vu, a sensação é de redescoberta do mundo.
Nessa experiência desci as profundezas de uma caverna, e nunca pensei que o silêncio e a escuridão profunda num lugar como esses me falassem tanto à alma, fossem como uma meditação, um religare. Mesmo com todos os obstáculos, não foi difícil descer a caverna, mas simplesmente ter que deixá-la. Quis me deixar por lá vagando naquela escuridão pertinente. Inevitável não lembrar de Platão. Será que havia entrado numa dessas? Será que a Terra seria essa ilusão, alegoria?
Desde que tive que sair de lá e voltar para o mundo exterior fiquei me sentindo diferente, como se o anoitecer, e o crepúsculo me chamassem de volta à poesia daquele lugar, como se as galáxias e seus buracos negros fossem uma extensão daquilo que sou...