Se não é tarefa fácil avaliar a figura literária de um escritor do passado, o que dizer do desafio de comentar a contribuição de um poeta do...

Uma poética da lucidez


Se não é tarefa fácil avaliar a figura literária de um escritor do passado, o que dizer do desafio de comentar a contribuição de um poeta do nosso tempo? No primeiro caso, o tempo costuma ser aliado do trabalho crítico, que consiste em aferir-se à repercussão do estilo do autor ao longo dos anos, em investigar-se quanto sua obra tem sido lembrada e qual a sua relevância na engrenagem complexa a que Antonio Candido chamou de literatura como sistema. Já no caso dos nossos contemporâneos, não podemos contar com o auxílio na maturação das nossas impressões, o que, sem dúvida, é uma dificuldade a mais a embaraçar o trabalho do leitor. E, no entanto, essa dificuldade pode ser convertida em favor, se não da objetividade, da autonomia propiciada pela inestimável singularidade desse ângulo de visão - o do tempo presente - em que os artistas podem ser flagrados ainda em plena desordem e imprevisibilidade de sua oficina, cuja produção acompanhamos em tempo real e cujos resultados medimos tão-somente com a régua sincrônica dos efeitos produzidos por cada um dos poemas que vão se acumulando.

O autor contemporâneo que tenho em mente, enquanto faço essas anotações, é o poeta paraibano Sérgio de Castro Pinto, que vem recentemente de celebrar seus 70 anos de vida e 50 de poesia, com o lançamento, pela Editora Escritura, de sua Folha corrida, antologia de poemas escritos entre 1967 e 2017. Ali se encontra o essencial do que ele já publicara em A Flor do gol (2014), Zoo imaginário (2005); O Cerco da memória (1993); A Quatro mãos (1983); Domicílio em trânsito (1983); A Ilha na ostra (1970) e Gestos lúcidos (1967), além de registros da fortuna crítica e de opiniões esparsas sobre a sua obra. Uma produção e uma fortuna crítica que lhe garantem o lugar de maior importância entre os poetas paraibanos, desde Augusto dos Anjos.

Em seu ensaio clássico A Arte como procedimento, V. Chklovski nos ensina que a função da arte é resgatar a nossa capacidade de perceber o mundo, que vai se enfraquecendo gradativamente devido ao hábito; "Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte". Parece ser essa uma formulação bastante consensual em teoria literária. Todavia, há um detalhe que algumas vezes nos escapa, ao adotá-la: é que há algo que precede a desautomatização do objeto (do mundo representado) na obra de arte, qual seja a desautomatização da própria linguagem. E é nesse aspecto que a obra de Sérgio de Castro Pinto mais me sensibiliza: o poeta não deixa que as palavras repousem na esterilidade confortável do hábito. Comprovam-no os exemplos que seguem:
(1) No poema "As Cigarras", o primeiro verso se encadeia sintaticamente com o título para produzir uma metáfora surpreendente: "As cigarras/ são guitarras trágicas". Ressalta, no plano semântico, a qualidade comum que se pode atribuir aos dois termos ali associados: ambas, cigarra e guitarra, são seres ruidosos; ambas, predestinadas tragicamente a produzir esses sons. Mas não apenas isso: o leitor mais afeito aos recursos da poesia terá percebido na aliteração (aS CigarraS São guitarraS trágicaS) o efeito que faz com que as cigarras/guitarras do verso ressoem vivamente no corpo do leitor. E não apenas isso: com mais alguma argúcia, esse leitor perceberá que cigarras, guitarras e trágicas compartilham tantas letras que o efeito resultante é praticamente o de uma metamorfose de uma palavra em outra, à medida que o olho percorre o verso.

(2) Em "Atos falhos", à expressão usada no título -´um clichê do vocabulário psicanalítico - o poeta agrega um segundo contexto semântico, no qual o termo "atos" (apartado visualmente de "falhos" pela quebra intencional do verso) evoca cada uma das divisões de uma peça de teatro: "Sequer os ensaio./ mas os meus atos/ falhos/ encenam-se assim:/ eles já no palco/ e eu ainda/ no camarim." A imagem alegórica de uma encenação não ensaiada mantém, entretanto, perfeita correspondência com o conceito freudiano.

(3) Em "Os pobres", uma sequência de metáforas conceituam poeticamente "as costelas dos pobres": "móbiles de Calder", "armas brancas disfarçadas na bainha da carne", "adagas do mais puro aço". Mas, no último verso, o processo se inverte, e a expressão "osso duro de roer", cujo sentido metafórico tornou-se de uso comum, resgata parcialmente a referência ao sentido,literal de "osso", com o que se restaura sua expressividade.

(4) Em "Kitsch", a descrição de uma cena em que "soldados de polícia/ ofertam às namoradas/ buquês de roletes, além de melodias..." é arrematada magistralmente, equilibrando-se entre o humor e o lirismo, no surpreendente jogo paronomástico entre um gerúndio e um nome próprio: "...e vão orlando a noite/ à voz de orl
ando dias".

Seriam muitos os exemplos. Com efeito, não há um único poema de sua Folha corrida em que o poeta não tenha empregado ao menos um recurso expressivo voltado à função da desautomatização acima mencionada. Munido de uma rica provisão de recursos criativos (procedimentos rítmicos, sintáticos, semânticos), desde os primeiros poemas trazidos à luz, Sérgio de Castro Pinto se empenha em desconstruir nossos hábitos de percepção e nos representa o mundo a partir de ângulos inusitados. Observe-se que a singular subjetividade dessa poesia não resulta de fundos mergulhos narcísicos, mas se revela, quase sempre, no gesto fotográfico de olhar para o mundo e reinventá-lo, traduzi-lo, nomeá-lo. Há, em sua poesia, uma espécie de olhar redefinidor lançado sobre a realidade cotidiana. Mas nem os bichos, nem os objetos e circunstâncias do cotidiano; nem a crônica afetiva da cidade e seus personagens; nem o registro de uma ou outra referência pontual a situações colhidas da memória individual - nenhuma dessas matérias prevalece sobre o intento lúdico de reordená-las nesse universo autônomo que é o das palavras. (Texto publicado no livro "Paraíba na literatura", Editora A União, João Pessoa, Paraíba, 2019)

Poemas analisados:

a) as cigarras

são guitarras trágicas.

plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.

kipling recitam a plenos pulmões.

gargarejam
vidros
moídos.



o cristal dos verões.

b) atos falhos

sequer os ensaio.

mas os meus atos
falhos
encenam-se assim:

eles já no palco
e eu ainda
no camarim.



c) os pobres

as costelas dos pobres
são móbiles
de calder

ou armas brancas
disfarçadas
na bainha da carne?

as costelas dos pobres
são adagas
do mais puro aço.

aço temperado na caldeira dos trópicos.

desembainhadas, as costelas
dos pobres
são um osso duro de roer.



d) kitsch

ao amigo joaquim inácio brito

soldados de polícia
ofertam às namoradas

buquês de roletes
além de melodias.

após, batem em retirada
e vão orlando a noite
à voz de orlando dias.


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