Nossos fios de missangas
“A vida é um colar: Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas...” (Mia Couto)
Certo dia, não lembro como, há muito tempo, chegou em minhas mãos, um texto de Mia Couto. Fiquei surpresa inicialmente com o nome do escritor, para mim bem enigmático, que trazia uma sonoridade que me atraía. “Cada homem é uma raça” foi um dos primeiros textos lidos. Tanto impacto trouxe, que mesmo com todo respeito a obra de Saramago, passei a ter em Mia meu próprio “Saramago”. Como se ele fosse meu Prêmio Nobel particular, tamanha admiração pela escrita que pensei ser inimaginável. Não entendo de crítica literária, mas como leitora, considero, assim como a Clarice Lispector, que esse o autor representa uma experiência ímpar de escritura.
Apesar de, depois desse primeiro contato com a leitura, desejar muitíssimo encontrar com ele, perdi as duas oportunidades que tive. Uma na cidade de João Pessoa e outra em Salvador. Mas mantenho um reencontro constante com ele na literatura. Todos os anos a gente se reencontra em algum momento da vida, dos dias, das circunstâncias mais malucas em que no meio de tantas coisas eu parto em direção às vozes que sal- tam das palavras escritas de Mia Couto. Assim foi no “Histórias Abensonhadas”, “Terra Sonâmbula”, “O Fio das Missangas” e mais recentemente com “E se Obama fosse africano?”.
Eu só posso imaginar e crer que escrever seja algo sagrado, e mais sagrada ainda seja a escuta que escritores e escritoras fazem de seu Tempo. No caso de Mia, penso, como em Manoel de Barros, é essa entrega ao Outro, capaz de perfazer uma narrativa não centrada em si mesmo. Ao ler esses textos fico imaginando como a oralidade é capaz de tanto, do Todo, do inimaginável, como é capaz de filosofar ultrapassando a racionalidade e fazendo tanto sentido suas metáforas, dizendo tan- to e de um modo tão simples.
Os textos nos tiram de gaiolas, são vOos imensos. Essas narrativas me fazem voltar aos banhos de chuvas torrenciais correndo pelas ruas de minha cidade natal, indo de biqueira em biqueira, ficando rosa a cada clarão dos relâmpagos loucos estalando nos céus.
Em 2019 tive outro reencontro com Mia Couto, no corpo em cena de André Morais, multiartista paraibano, que no espetáculo Memórias de Terra e Água me trouxe de volta para Mia. O corpo cênico do André me lembrou muitíssimo os derviches, protagonistas das danças sufis (danças oriundas da Síria). No espetáculo os textos sobre finitude e eternidade viravam dança, um bailar.
O corpo do ator dançou rodopiando, tecendo no palco os fios invisíveis, juntando as missangas de Mia Couto oriundas de seu povo, também tecidas como narrativas de si. A África que habita em cada um de nós. É muito bom poder costurar inicialmente o invisível, o que está por dentro. Costurar pelo avesso. No espetáculo dirigido por Lúcia Serpa, André costurou e muito risos e lágrimas, acho que chegou de certo modo ao Infinito do Ser, se refazendo da saudade de seu pai. André juntou muitas missangas de formas e cores diferentes, pegando cada texto e sendo capaz de narrar com Fabiano Diniz, que fez a iluminação do espetáculo, e Victor Figueiredo, a poética do Mia Couto e a sua própria.
Quando a gente costura pelo avesso ninguém vê, só nós mesmos. O que as pessoas vêem é o que está por fora, o alinhavo só a gente sabe o trabalho que dá, os furos de agulha que a gente leva, deixando pequenos bordados dos poros sangrando.
Quando finalmente a gente vira a cena pelo avesso tenta, na medida do possível, harmonizar, expressar com segurança a tentativa de consertar e criar. Encontrar novos “fios de missangas” trazidos por André Morais, Victor Figueiredo, Fabiano Diniz, Lúcia Serpa e Wigne Nadjare foi me deixar seguir na descoberta do mundo, um vasto mundo...