Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito pelo contrário, trata-se de uma produção excelente, do ponto de vista do visual, do elenco e, sobretudo, do tratamento dado àquilo que é o cerne do romance de Victor Hugo: a injustiça, que se divide em cega observância e cumprimento da lei, cuja encarnação é o inspetor Javert, e em acumulação de riquezas, que fecha os olhos aos desvalidos e necessitados, ajudando a criar uma sociedade de submundo. O filme dirigido por Tom Hooper (UK/USA, 2012) é, portanto, uma obra a não ser esquecida.
O problema, me parece, está no gênero escolhido – musical – e no elenco, apesar de contar com estrelas bem conhecidas. Senti como muito artificial (artificial já é, per se) as falas transformadas em músicas, muitas delas difíceis de se identificar como uma melodia palatável. Ao lado disso, vemos que em determinados momentos soa, mais do que artificial, ridículo, ver Hugh Jakman e Russel Crowe tentando cantar. Por mais que eu tivesse boa vontade, não me furto de dizer que, em alguns momentos, fiquei com vergonha das interpretações. Assim como não consigo descolar Jean Valjean da figura de Gérard Depardieu, na excelente série da televisão francesa, de 2000, que depois virou filme, com seis horas de duração – para mim, a melhor versão do romance no cinema –, também não consigo apartar as figuras de Hackman e Crowell de Wolverine e do gladiador Maximus. O pecado na série da televisão francesa é John Malkovich interpretando Javert. Malkovich sempre interpreta a si mesmo. O melhor Javert, para mim, é Geoffrey Rush (EUA, 1998). Javert é duro, inflexível, só enxerga a lei. Não há nada para além na face da terra, além da lei. Victor Hugo deixa isto bem claro, no romance. Mas Javert não é sem emoções ou expressividade. Embora seja contido. No caso, de Crowell, como intérprete de Javert, temos um inspetor agressivo, em lugar de um homem de cálculo, um Javert que parte para uma disputa corporal com Jean Valjean, em lugar de deixar o trabalho sujo para seus subordinados, impondo-se pela sua estatura moral, embora equivocada e doentia.
No tocante ao personagem Thénardier, o problema é mais grave. Quem interpreta um dos maiores vilões e um dos seres mais vis e abjetos da literatura é Sacha Baron Cohen. Não preciso dizer mais nada... O diretor apostou na faceta menos importante de Thénardier, que é o histrionismo, interpretação muito fácil para Sacha Baron Cohen. A natureza de Thénardier é a de um homem sem humanidade, sem piedade, um monstro que explora as crianças dos outros, como fez com Cosette, e explora e abandona os seus filhos à própria sorte, cujo resultado é a morte dos ainda jovem Gavroche e Éponine, e o desaparecimento dos dois menores de 5 anos... O histrionismo do ator, que eu diria canastrice, esconde quem é, na realidade, Thénardier, cujo caráter se complementa, quando migra para a América e se tornar traficante de escravos.
Outra coisa que achei grave no musical é o fato de que, muito dificilmente, as pessoas que não conhecem o romance, entenderão o que realmente ali se passa. Há muitas lacunas, uma das principais causas é a transformação do diálogo em cenas cantadas. O cantar toma muito tempo; os diálogos são muito mais ágeis, além de soltar mais a intepretação dos atores. Apesar das 2 horas e 38 minutos do filme, as lacunas são enormes, que poderiam ser minimizadas se não fosse um musical. Só para dar um exemplo, de modo a não me alongar, um dos episódios mais tensos do romance, a fuga de Jean Valjean pelos esgotos, levando consigo Marius gravemente ferido, é transformado em uma cena rápida e pífia.
Plasticamente, no entanto, vejo como um dos melhores cenários, este do musical. E já que estamos falando de beleza, fico inconformado com as belas Cosettes – Virginie Ledoyen, na série francesa, e Amanda Seyfried, no musical – contracenando com o narigudo Enrico Lo Verso e o bocudo Eddie Redmayne, respectivamente. Cosette tendo sofrido muito nas mãos dos Thérnadier, mereceria um par mais bonito.