- Deus escreve certo com linhas tortas - diz a visão da Compadecida ao Trancoso, num de meus livros. E ele responde: - A senhora deveria ...

"Muito além da timidez formal de uma arte"



- Deus escreve certo com linhas tortas - diz a visão da Compadecida ao Trancoso, num de meus livros. E ele responde:
- A senhora deveria ter dado um caderno de caligrafia pro menino.

Penso no Aleijadinho tendo de esculpir de joelhos, com o martelo e o cinzel amarrados nos cotos dos braços. Em Tolouse-Lautrec, vítima de uma distrofia poli-hipofisiária que – de queda em queda – o deformaria e o reduziria a um metro e cinquenta e dois de altura.

Penso em Miró, com tal falta de controle motor, que seria incapaz de dar o laço nos sapatos, pelo que acabaria bolando aquele estilo taquigráfico dele, na ânsia de pintar por cima de pau e pedra!

Penso em Demóstenes, com tão sérios problemas de dicção, que se exercitaria em longos discursos com a boca cheia de seixos, ante o mar, até dominar o fragor das ondas e ser ouvido com clareza.

Penso no furioso Beethoven, com sua estúpida surdez. Penso em Borges e Joyce, caminhando pra cegueira, Sartre cada vez mais estrábico exofórico; Hermeto Paschoal e Sivuca albinos, Guignard cada vez mais tímido por causa dos lábios leporinos, Stephen Hawking desmantelado pela esclerose lateral amiotrófica!

Talvez a radicalização, salvo melhor juízo, seja indispensável para que não se fique na timidez formal de uma arte ou na mediocridade de uma ciência que nada inova. Veja o Apocalipse 3.15:

- Conheço as tuas obras, sei que nem és frio nem quente. Assim, porque és morno, vomitar-te-ei. Uau!

Penso em Pelé, Garrincha, Ednanci Silva, Ednalva Laureano da Silva (Pretinha), Daiane dos Santos, Acelino Popó Freitas – todos provenientes da pobreza. O mesmo se pode dizer de gênios da música popular brasileira, de Noel Rosa a Milton Nascimento, de Luiz Gonzaga a Jackson do Pandeiro. Na nossa literatura, temos Machado de Assis, mulato pobre e gago que acabou se tornando aquele que é tido por muitos como nosso maior romancista.

Ao terminar de ver o filme de Olivier Dahan, com a Marion Cottilard no papel da Piaf, me convenci de vez de que a genialidade é um dom que não é dado pra donos de biografia sensata. Claro que ter um corpo frágil e passar a primeira parte da vida com a avó paterna – que trabalhava num bordel – marcou sua personalidade e sua visão do mundo. Aí vejo um documentário sobre o tão magistral quão turbulento Michelangelo Merisi da Caravaggio, lembro-me da impressão que me deixou o romance “A Corrida Para o Abismo - O Gênio Caravaggio”, de Dominique Fernandez, e concluo que o estado de tensão permanente – causada ou não pelo berço – é que determina a hipersensibilidade geradora da percepção particular da maioria dos indivíduos excepcionais.

A pequenina mexicana Frida Kahlo não teria pintado o que pintou, penso eu, sem a poliomielite que quase a matara quando menina, as sequelas do violento desastre entre o ônibus de Coyoacan e o trenzinho de Xochimilco, quando ela seria traspassada por enorme pedaço de ferro que lhe entraria pelo quadril e lhe sairia pela vagina, provocando-lhe dores excruciantes o resto da vida. O desespero constante dessa mulher, sempre me lembrou o de Van Gogh, o holandês que, constantemente irritado – com a rejeição do pai, da Igreja Reformista Holandesa, das mulheres e do mercado de Arte, cortou a própria orelha com uma navalha e acabou se matando com um tiro.

Que fazer, se se nasce e cresce numa boa? Conhecer os shoppings de Paris e Nova Iorque. Ou ser uma exceção, como Chico Buarque e Bertrand Russell.



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