O que fazer com uma montanha que tem endereço?
Um pedaço de jornal rolou pelo chão – e veio cair um recado na minha mão. O recado dizia de uma casa à venda, que tinha como vizinha uma montanha. Eu olhei em volta e não vi montanha alguma contornando a cidade. Mas a notícia era imperiosa, a montanha estalava e podia ser vista todo dia. Fiquei tão curioso que destaquei o endereço e fui em busca da casa.
Dirigi por algum tempo, atravessei uma ponte. De fato, à medida que eu me aproximava da casa, crescia, ao fundo, uma montanha azulada, em cujo topo havia névoas breves – verdadeiros soluços brancos. Era mesmo um fascínio morar num lugar daquele, com uma montanha tão imponente e que estalava. Ocorre que, quando catei no papel o endereço exato da casa, notei algo esquisito. A rua era sem nome, a casa sem número. O único endereço ali era o da montanha.
O que fazer com uma montanha que tem endereço? Eu não sabia. Então resolvi que olhar montanha pode ser arrebatador, mas que, mesmo tendo endereço e estalando, uma montanha será sempre uma gigantesca pedra. E desisti dos soluços brancos.
Talvez morrer antes
Veio ontem almoçar comigo o meu filho que se droga. Há uns dias ele não se drogava – mas veio para acabar de me partir. À mesa, quase não me olhava e esquecia-se do pai – observava, obsessivo, os ramos do tapete. Foi à pia escarrar algumas vezes. Quando se dobrava para cuspir, eu via bem o seu pescoço com sujos, a sua orelha nua. Eu sempre cobri bem meu filho quando ele dormia aqui – e sempre lhe imprimi o calor de minhas orações. Ontem lhe ofereci coisas, estiquei a mão, tentei agradar seus cabelos empoeirados.
Mas ele bateu o portão da nossa casa, a cor do rosto fugida, a roupa reduzida, e ganhou a rua. O que pode uma mãe vendo um filho como ontem eu vi o meu? O melhor para ela é deixá-lo morrer? Talvez morrer antes.
A Porta
(para Sérgio De Castro Pinto)
Ontem acordei querendo uma porta. Me preparei, saí pela cidade. Andei em depósitos, mercados, mas o meu dinheiro não dava para adquirir as diversas portas que eu via, passava a mão. Vi uma bonita, numa casa de esquina, o jardim de rosas acesas. Quis arrancá-la, mas não pude. Havia ali um espinhoso cão.
Sou um cidadão comum, creio na perseverança. Sendo assim, voltei para o subúrbio onde eu moro. Reuni meus irmãos, primos. Disse:
– Vamos atrás da porta.
E foi procurando, por ali mesmo, que vimos a porta no alto. Sentada na colina – a porta. Sem casa, sem calçada, sem batente. A porta sem pessoa – fechada. A porta sem madeira, sem fórmica. O vento não lhe estrondava os dedos. Não tinha rachadura nem, pelo que víamos, cupins. Mas era alta e era porta. E eu trazia, quente na mão, a chave para furá-la.