(José Nunes)
Retornar às paisagens onde desfrutamos bons momentos ajuda-nos a retocar sonhos que, ao passar do tempo, estão acomodados no recanto da memória. Portanto, é formidável regressar a certos lugares que nos são íntimos para que os poemas não se percam na composição dos capítulos da vida.
Tenho Serraria nas imagens que carrego no meu coração, na poesia que me inspira ou, como agora, quando lá estive para compromissos familiares.
Numa crônica publicada há décadas, a primeira tentativa de ser escritor, que foi a minha estreia no mundo das letras, falava justamente do amanhecer em Serraria. Naquela manhã de fevereiro de 1975 estava cheio de saudades porque voltava de uma temporada em que eu estivera afastado da cidade, num retiro involuntário. Eu recordava no texto as emoções de um tempo da infância que não esqueci. Emoções estas que me acompanham por onde ando.
Na quietude da madrugada de agora com vento fino, escutava os galos cantando à distância, talvez no terreiro de alguma casa. Logo depois, os pássaros festejavam o novo dia no matagal existente detrás da casa e também na praça central. Fechava os olhos para melhor traduzir o alvorecer festivo, porque o antemanhã em Serraria é esplêndido.
Depois de uma noite de comemorações, cedinho, abrindo a porta da casa onde pernoitei, uma centenária casa que servia de residência do comerciante Zezinho Afonso, hoje mantida com zelo pelos seus filhos, contemplei a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, coberta de esparsa névoa e de silêncio. A brisa fria ainda aspergia a cidade quando eu, solitário personagem da rua, olhava a paisagem silenciosa onde alguns cães andavam e um galo, igualmente sozinho, perambulava e executava a sua sinfonia matinal.
Na crônica do passado, lembrava minha infância quando meus pais, meus irmãos e os amigos que fizeram de Serraria a paisagem de suas vidas, como meus ancestrais que ali chegaram de mansinho, desbravaram as terras e cultivando esperanças nas sementes que jogavam no chão, nos trouxeram até a presente data.
Naquele dia, as bordas da cidade lembraram-me dos homens que deixaram o mundo urbano para produzir sua literatura. Tolstoi voltou para Yasnaya Polyana a fim de recolher as inspirações do mundo onde nasceu e, munido de sonhos, escrever belas páginas da literatura mundial. Manuel de Barros apoderou-se do Pantanal e da terra retirou os poemas que nos comovem.
Como versejou o poeta “um galo sozinho não tece uma amanhã”, assim se deu no meu amanhecer em Serraria, igual a todos outros amanheceres quando muitos galos cantavam. Galos que anunciavam o alvorecer com o sol soltando fios sobre os telhados úmidos pela fina neblina, que esperei ansioso pelo alvorecer.
Enquanto olho para Manoel de Barros e Tolstoi, como modelos de poeta e de escritor, sinto em minhas mãos e no coração o cheiro da terra que alimenta minhas tentativas de aprendiz da arte de poetizar.
Por isso retorno à Serraria, muitas vezes na minha imaginação, carregando comigo o desejo de que o resto do massapê nunca desgrude de minhas mãos, mas inspire a minha literatura.