(Sérgio de Castro Pinto)
A boa leitura sempre consistiu, para mim, numa espécie de revolução silenciosa. Dela, sempre saí diferente de quando entrei. Ou seja, mal concluo a última frase de um romance ou o último verso de um poema, sinto-me com uma nova percepção da vida e do mundo. Pena que nem todos pensem assim e tratem o escritor, sobretudo o poeta, com certo ar de mofa e de desdém. Isso sem falar que os editores e os livreiros discriminam a poesia, gênero literário que, dificilmente, é exposto nas vitrines das livrarias, mas, quase sempre, escondido nas últimas prateleiras, nos locais mais longínquos e ermos. Tanto que, quando encontro numa livraria alguém de joelhos, numa posição contrita e genuflexa, não tenho dúvida: esse alguém esta à cata de um livro de poesia. É um leitor de poesia. E dos bons!
Sobre o livro, escreve João Cabral de Melo Neto: “(...) modesto: só se abre se alguém o abre”. Pois bem. Nestes meus sessenta e dois anos de vida, outra coisa não fiz senão abrir livros, devassá-los e gozar de sua intimidade. Não somente livros, mas tudo o que, feito de papel e tinta, me caia às mãos: jornais, revistas, gibis, almanaques, e até mesmo um vetusto tomo de um médico alemão, de cuja leitura o meu pai – jornalista, hipocondríaco e completamente leigo em medicina – extraía conclusões estapafúrdias para “diagnosticar” os achaques e as mazelas do filho único que eu sou e continuo sendo. O livro, que povoou a minha infância e parte da minha adolescência, denominava-se salvo engano, O conselheiro médico do lar.
Li, e ainda hoje leio, bulas de remédio, receitas culinárias e “fórmulas de preparados para pele”, como o fez – no caso dessas últimas – o poeta Manuel Bandeira para encontrar os caminhos tortuosos e íngremes do verso livre, segundo ele uma conquista difícil, pois, situando-se na confluência do Parnasianismo com o Simbolismo, habituara-se naturalmente, quase sem esforço, ao ritmo metrificado e às formas fixas dessas duas correntes líricas.
A minha primeira leitura foi um livro de crônicas do meu pai, cujo narrador – um menino da década de 30 – discorria a propósito do conflito entre liberais e perrepistas. Eram crônicas lidas ao sabor de uma profunda nostalgia, sentimento estranho para uma criança que, ainda sem passado, sentia uma saudade atávica do menino antigo que fora o seu pai. Daí, para também escrever as minhas “memórias”, foi um passo, apenas com uma diferença: impossibilitado de explorar o tempo pretérito, de convertê-lo em matéria bruta do meu texto, não me restou alternativa senão inventá-lo. O que fiz, inconscientemente, na esteira do verso de Manuel Bandeira: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
Aprendi, a partir de então, que uns mais, outros menos, os livros quase sempre encerram uma espécie de “invenção da verdade”. E que essa, mesmo de forma velada, sub-reptícia, denota o inconformismo do escritor diante do mundo, o conflito que se estabelece entre “a vida vivida e a vida pensada”, pois já não disse Oscar Wilde que, “Para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos”? Cumpre-nos vivê-la, então, através da leitura. Mas principalmente, disseminar a leitura, pois o leitor “sozinho não tece uma manhã”.
(excerto de “O leitor que eu sou”)