(Germano Romero)
Os pedaços de melão desmanchavam-se na boca. Doce néctar a inundar todo o nicho de papilas. Que prazer. Logo pus-me a imaginar as mandíbulas da caveira triturando aquela polpa, deglutida pouco a pouco pela goela agradecida.
Salivares atuavam no preparo que descia ao estômago ansioso, próxima etapa digestiva. Que perfeição. E as fatias engolidas se faziam cachoeiras em suco deleitoso escorrendo pelo esôfago.
Ó melão que veio da terra arada, adubada, trabalhada e tão sofrida! Colhido e acolhido no gradil do caminhão rumo à feira a se vender. Três por dois, quem manda é o freguês. Ou nos tais supermercados, ordeiros e seguros, carimbados e lavados, prontos para ser levados.
Agora já me são e em mim se formarão pele, unha e cabelo que não param de crescer. Da divina combustão a energia gera vida. Movimento e pensamento fluem em plena evolução. Do pó nos refazemos e no pó reviveremos. Não quero ser cremado. Cinza morta não aduba. Que meu corpo um dia sirva de alimento ao que veio nas delícias do melão. E às minhocas a fartura fermentada deste corpo que vestiu durante anos uma alma bem vivida.
Já no último bocado prossigo ensimesmado com a mesma sensação. Por certo a doce fruta já se misturou no bolo que percorre seu trajeto. Assim nada se perde, não se cria e se transforma. Da terra vem a vida. Pouco mais recebe a morte. Como são bem parecidas, antagônicas se completam. A do fim, que é recomeço, nunca foi compreendida. Refutada, desprezada, temida, injuriada, razão de muita angústia, apavora até Augusto que aqui é bem lembrado. Chegada seja a hora de aceitá-la como parte de tudo o que acontece na espiral do firmamento! C'est la vie et non fini!
O melão que virou pele, em pó se tornará. A caveira que mastiga será idem devorada pela mãe que nos acolhe. Os ossos durarão quase uma eternidade. Não serão agraciados com a festa lá do céu, onde a roupa é bem mais leve. De bordados mais sutis, os sorrisos são de alma. Não há mais hipocrisia nesta nova sintonia em que o amor se torna música.
Vejam só que maravilha. De uma fruta bem comida voejou a inspiração nos mistérios que transcendem a rotina pueril. Das lições que há em tudo, disponíveis no prazer de quem olha e também vê.
Lua cheia vem e volta. Maré mansa ou na ressaca. Chuva e vento de agosto, tudo grita em devoção. E naquilo que é mais simples, muitas vezes num melão ou no vôo da borboleta, no aroma de um café que escapa da janela na paz do entardecer, pode haver felicidade. Regozijo bem descrito na poesia de Orlando que conclui estas bobagens. Mil perdões!
"Felicidade é
uma canoa no rio
uma sardinha na brasa
um cobertor para o frio
e um amor em casa".