(Bráulio Tavares)
Todo mundo sabe que no Cemitério das Profecias Apressadas o túmulo dos que preconizaram o fim da poesia com métrica e rima fica a apenas duas aleias de distância do mausoléu dos que decretaram o fim da pintura figurativa.
Modernismos literários à parte, a poesia de forma fixa continua a ser praticada no mundo inteiro, convivendo em paz com as formas mais recentes, que incluem a poesia não-discursiva, a poesia visual, o poema-objeto, o poema-performance, e por aí vai.
Rimar é como dançar. Exige intuição e exige técnica. Para efeito deste artigo vou considerar apenas a chamada rima exata ou rima consoante, onde as duas palavras que rimam precisam ter som igual a partir da vogal da sílaba tônica (rima / prima; tônica / eletrônica; precisa / camisa, título / capítulo; etc).
É diferente da rima toante, em que basta haver uma certa semelhança entre os sons: longe / onde; olhos / relógios; estrada / mata. Em geral, a rima toante se funda na vogal tônica, que é a mesma, como nos exemplos anteriores, ou parecida, como nestes: automóvel / ouro; quente / parede; profundo / pulso.
O Rei da Rima Toante chama-se João Cabral de Melo Neto.
O poeta é o dono do seu poema. Ninguém o obriga a nada. Quando põe o lápis no papel ou o dedo no teclado, ele é livre para escrever palavras até de cabeça para baixo, se quiser (Carlos Drummond já o fez, em “Amar/Amaro”).
Acontece, no entanto, que nessa Metrópole da Liberdade Absoluta existe uma região chamada O Bairro das Formas Fixas, como o soneto, o hai-kai, a sextilha, a décima... São fixas porque o prazer de cultivá-las está nas regras que devem ser seguidas. O jogo poético tem um componente de desafio técnico. Grande parte da sedução dessas formas poéticas é o esforço de estar à altura de uma exigência radical. A prática das formas fixas é uma espécie de esporte radical poético. Não é para qualquer um. É para quem pode.
O poeta que usa essas formas precisa mostrar que as conhece e as domina, tal como um músico que empunha o violão ou senta ao piano deve mostrar domínio do instrumento. Sem isso, dificilmente ele vai produzir algum efeito estético.
As palavras que rimam são utilizadas pela semelhança de som. O poeta inexperiente, que tem pouco vocabulário, tende muitas vezes a terminar uma linha com uma palavra qualquer e, ao chegar na próxima linha onde a rima deve aparecer, colocar no papel a primeira rima que lhe vem à cabeça. O poema é romântico. Ele diz à amada: “Eu te amo, e por isso estou aqui”. Mais adiante, precisando de algo que rime com “aqui”, vê-se obrigado a enfiar no poema um abacaxi ou um índio guarani, que não têm nada a ver com o que está sendo dito. Estão ali somente para não perder a rima. É o que chamamos de rima forçada, rima apelativa, usando palavras que entraram no poema como Pilatos no Credo.
A palavra que rima está sendo usada pelo som, mas é preciso fazer com que pareça estar sendo usada pelo sentido. Como se nenhuma outra palavra pudesse ter sido colocada ali, a não ser aquela, que, aliás, vejam só a coincidência! – rima exatamente com a palavra de uma ou duas linhas atrás.
Vi uma discussão sobre aquela antiga canção, “Mamãe” (Herivelto Martins, David Nasser e Washington Harline), que diz:
Mamãe, mamãe, mamãe...
Eu te lembro, chinelo na mão,
o avental todo sujo de ovo...
Se eu pudesse eu queria outra vez, mamãe,
começar tudo tudo de novo.
É evidente que o letrista queria encerrar a canção com estas duas últimas linhas, certamente as primeiras que ele pensou para este trecho. Ele precisava de uma palavra que rimasse com “novo” – e que se encaixasse no contexto. Podia ter usado povo, louvo, comovo... A solução encontrada (que alguns contestam) me parece boa, porque o avental sujo de ovo se encaixa perfeitamente na memória de infância proposta pela letra. A palavra fornece a rima, mas também tem tudo a ver com o assunto.
Palavras que têm poucas rimas forçam o poeta (ou o letrista de música) a repetir eternamente um pequeno repertório. Uma passada de olhos pela música popular brasileira nos mostra que o uso da palavra samba acaba levando os autores a se referir a muamba, corda bamba, a corda e a caçamba e assim por diante. A palavra Brasil, curiosamente, tem centenas de rimas possíveis, mas alguma pressão cívica empurrou inúmeros poetas ao uso de varonil, céu de anil, eventualmente fuzil ou cantil.
Drummond já abriu um poema (“Consideração do Poema”) anunciando: “Não rimarei a palavra sono / com a incorrespondente palavra outono”. Drummond nunca foi inimigo da rima. Rimou fartamente ao longo de sua obra, mas esse pontapé na mesa era para que as rimas fossem pensadas, e tivessem uma motivação maior além da mera sonoridade. Ou seja – que parecessem estar ali não pelo som, mas pelo sentido.
Pode-se falsificar uma rima? Há exceções? Claro, e exceções ilustres. Um caso clássico de rima apelativa foi produzido por Victor Hugo, no seu poema de tema bíblico “Booz endormi” do livro La Légende des Siècles (1855-1876). Dizia ele:
Tout reposait dans Ur et dans Jérimadeth ;
Les astres émaillaient le ciel profond et sombre ;
Le croissant fin et clair parmi ces fleurs de l'ombre
Brillait à l'occident, et Ruth se demandait, (…)
(Em tradução rápida, ou seja, sem pretender reproduzir todos os efeitos do original:
Tudo estava em repouso em Ur e em Jérimadeth;
os astros cravejavam o céu fundo e sombrio;
o crescente fino e claro, entre as flores da sombra,
brilhava no ocidente, e Ruth se inquiriu...”
Muitos críticos se dedicaram a buscar essa referência geográfica à cidade de Jérimadeth, até que se percebeu que era um trocadilho do poeta com “J’ai rime à deth”, “eu tenho uma rima para deth”. Rimas inventadas para “quebrar o galho” de um autor não são coisa rara, mas o fato disso ser feito pelo maior poeta francês não apenas legitima em parte o processo, mas aos meus olhos deixa o poeta, que era tão sisudo, com uma imagem mais bem-humorada e simpática.
Muitos poetas, antes de começar a redigir uma estrofe, fazem uma pequena lista das rimas possíveis. A lista de rimas é um pequeno mapa dos caminhos que ele poderá percorrer para dizer o que pensa. Ações metódicas como esta não comprometem a espontaneidade da escrita. Pelo contrário: mostrando antecipadamente as alternativas, ajudam a escrita a fluir de modo mais espontâneo, e deixam o poeta mais seguro, já sabendo por onde pode passar para chegar ao objetivo.
Se o poema vai ter rima obrigatória, não custa nada fazer antes uma lista de palavras com essa rima. E procurar entre elas as palavras que pareçam mais naturais, que desenvolvam o assunto da melhor maneira. É preciso evitar o perigo da primeira rima que vem à cabeça. Geralmente é ruim.
Por toda parte vemos poemas onde o autor, escrevendo meio de improviso, põe no fim do verso uma palavra com poucas rimas. Digamos que ele escreveu “cinza”. Agora, por causa disto, precisa escavacar a memória atrás de uma rima correta, e só acha “ranzinza” – e aí vai ter que encaixar essa palavra tão específica dentro do assunto que vinha tratando. Às vezes, dá. Geralmente, não. É aquele caso de “pintar o piso e se encurralar num recanto”. Fica sem escolhas.