(Germano Romero) Quando o meu amado pai ficou subitamente sem poder andar, por causa de uma estenose lombar aguda, encontrávamo-nos em Tel-A...

A verdadeira vida


(Germano Romero)

Quando o meu amado pai ficou subitamente sem poder andar, por causa de uma estenose lombar aguda, encontrávamo-nos em Tel-Aviv, numa viagem que ainda tinha pela frente três dias em Londres. Com 89 anos, e mesmo novinho em folha, o imprevisto nos preocupou.

Após o diagnóstico recebido no hospital israelita, fomos tranquilizados pelos médicos daqui, por telefone, de que não havia gravidade nem urgência. Que poderíamos seguir viagem. Mesmo porque, sentado ou deitado, nenhum incômodo ele sentia. Só não conseguia andar. Que coisa.

Esquecidos os problemas, chutamos a bola para a frente e tomamos o avião para Londres, com uma breve escala em Zurique. Já instalados no hotel, com muita dificuldade com o nosso paraplégico, eis a questão: e agora? Três dias pela frente, sob um surpreendente céu azul e a capital da Europa a nossos pés. Pés? Nem pensar! Só se fossem rodas… Eureka! Eis a ideia, junto com a dúvida: será que ele topa?

Bem, conhecendo o cronista, amante da vida e da saúde, elegante e apreciador da elegância, era natural supor que ele não topasse andar de cadeira de rodas numa cidade que conhecia tão bem com a palma dos pés.

Arriscamos. Através das facilidades da internet, em minutos o mais apropriado e confortável veículo para a ocasião era entregue na recepção do St. James, da Pall Mall.

Agora, o suspense. Pois nada havíamos lhe dito sobre a iluminada ideia. Na expectativa de sua reação, batemos na porta de seu quarto, com a cadeira em punhos.

“Vamos passear?” – perguntamos, já adentrando e empurrando a bendita em sua direção. Ele estava sentado na lateral da cama, esfregando os olhos, como já se preparando para ver a novidade. Levantou a cabeça, olhou para a cadeira de rodas, e, imediatamente esboçando um largo sorriso, sapecou: “Só se for agora!”

Ora vejam só, e nós receando sobre a sua impressão diante da situação e do inesperado convite. Mas, logo entendemos que aquele era o Carlos Romero que conhecíamos, há 90 anos, tão bem vividos com alegria e bom humor.

Foram três dias inteiros na rua. Livrarias da Charing Cross, concerto no Royal Festival Hall, balé no Coliseum, pontes, parques... como é bom andar numa cidade inteiramente acessível, sem ao menos 2 centímetros de batente.

Não era surpresa que o bom humor do cronista estivesse sempre presente. Dava gosto vê-lo sorridente, cumprimentando as pessoas, completamente esquecido da estenose. Chegou a olhar para mim, o seu “motorista”, e disse: “Se eu soubesse que era tão bom, já teria alugado uma cadeirinha dessa antes”. E todos gargalhamos.

Numa das movimentadíssimas esquinas da Leicester Square, aguardávamos o sinal abrir para atravessar pela faixa de pedestres. Então ele percebeu, ao lado, um rapaz segurando o carrinho de seu bebê, também à espera do sinal. Cutucou-me, falando baixinho: “Diga-lhe que, no futuro, eles trocarão de lugar e ficarão como a gente”.

É, meu pai, como foi bom trocar de lugar com você, nesses últimos anos. Quantas vezes você dizia aos outros, carinhosamente, que, agora, eu é quem era seu pai… E como foi bom poder, na hora do banho, lhe dizer: “Feche os olhos que agora vou ensaboar seu rosto”… Que sensação inesquecível era passar minhas mãos por suas pálpebras macias, que, há poucos meses se abriram para definitivamente enxergar o caminho, a verdade e a verdadeira vida...



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