(Chico Viana)
Por volta das cinco da tarde, Dalila entra no escritório e começa a olhar para mim. Não late, não gane, não esperneia. Apenas espera. Se insisto em continuar diante do computador, ela eriça as orelhas numa repreensão muda. Caso eu continue indiferente, ameaça se baixar como se dissesse: se você não se levanta, faço aqui mesmo.
Esse argumento é decisivo. Levanto-me, passo a coleira em torno do seu pescoço, borrifo-lhe um pouco de repelente contra carrapatos e desço com ela as escadas rumo ao calçamento. Dalila é instruída, segura-se o quanto pode e só nas cercanias de um terreno baldio faz suas necessidades.
Envolvo a matéria num plástico e jogo-a num lixo próximo, longe dos olhos e narizes de quem passa. Gesto civilizado, que vi faz muito tempo num filme francês. Muita gente por aqui ainda não o copia; prefere fazer da rua privada de cães e acrescentar mais um argumento a quem não gosta dos bichos. Não é agradável recolher “aquilo”, é verdade; mas a civilização impõe deveres de que a gente não pode nem deve se esquivar.
Depois de aliviada, Dalila começa o seu passeio. Passa o dia em casa aguardando esses 10 ou 15 minutos de rua, quando pode percorrer um espaço maior e cheirar à vontade. Li certa vez que para tirar o estresse do cão não é preciso levá-lo para passear; basta fazê-lo cheirar um espaço que para ele seja novo. A diversidade de odores que encontra ali revigora-lhe a alma, a sensibilidade, o espírito, ou que nome tenha o centro de suas emoções.
Um palmo de terreno, monótono e insípido para nós, pode ser para ele uma excursão turística de cheiros. Seu olfato capta gradações que ultrapassam de muito os limites para os quais nossas narinas estão equipadas, os quais vão, grosso modo, do perfume francês a um desses esgotos de favela. O resto ignoramos.
Não temos, de fato, a hipertrofia de um sentido como a têm os cães em relação ao cheiro, ou as águias quanto à visão. Sentimos tudo dispersamente, por igual, o que não é vantajoso. Se nada chega ao intelecto sem passar pelos sentidos, talvez esteja nessa dispersão a fonte da nossa ignorância do mundo. Como captá-lo, como compreendê-lo, se o nosso cérebro padece de anemia sensorial?
Vejam se não tenho razão: Dalila me puxa pela coleira e vai sugando o chão com as narinas. Isso a impulsiona a ponto de quase me fazer deixá-la escapar. Parece um aspirador vivo na ânsia de absorver os menores resíduos olfativos da paisagem, e sairá dessa experiência plenificada. Enquanto isso, eu me desligo das sensações em volta pensando nestas besteiras que o leitor está lendo. Tudo para depois, friamente, redigir um texto diante do computador. Qual dos dois está certo?