O começo de tudo... Foi numa manhã ensolarada que este cronista, ainda muito cedo, saiu de seu apartamento para o exercício do cooper diá...

Tropeço na caminhada

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O começo de tudo...

Foi numa manhã ensolarada que este cronista, ainda muito cedo, saiu de seu apartamento para o exercício do cooper diário na praia. Antes de movimentar as pernas no asfalto, ele passeou os olhos pelo jardim, cujas flores pareciam acenar-lhe com um colorido bom dia. A manhã estava mesmo festiva.

Antes, porém, de fechar o portão e dar os primeiros passos em direção ao mar, eis que assaltou-lhe um pensamento. Dir-se-ia uma intuição ou o aviso de um espírito amigo. Não sei. Só sei que a voz íntima advertia que ele não fosse para a caminhada no asfalto. Mas como deixar de fazer o cooper, costume que já vai há mais de vinte anos? Não! - protestou intimamente. A voz, porém, continuou advertindo:

- Se você persistir no seu propósito, fique certo de que depois de alguns metros de caminhada, sofrerá uma forte tontura, cairá no solo e perderá os sentidos por conta de uma síncope.

Fiquei por alguns momentos parado na calçada. Parado e indeciso. Fazer ou não fazer o cooper, eis a questão. Ponderei. Refleti. Aliás, desde alguns meses, que vinha tendo algumas tonturas. Até numa manhã dessas, evitei sair para comprar os jornais do domingo, já com pressentimento de tontura. Mas este fato eu não quis revelar aos meus queridos familiares. Para que preocupar os outros? E por que essas tonturas?... Fiz um ligeiro exame de consciência e cheguei à conclusão de que, por haver negligenciado com a alimentação, decerto aqueles antigos sintomas reapareceram.

Lembrar que as primeiras tonturas surgiram com as gorduras, quando comia de tudo, sem a menor preocupação com a alimentação. Isto nos idos de 1982 para 1983.

Mas voltemos ao acidente no asfalto. Contrariando a voz interior, saí para a caminhada. E quando cheguei perto do mar, veio-me novamente este alerta:

- Se você quiser evitar uma queda desastrosa, que tal caminhar à beira-mar? Na areia o impacto será menor.

Minha desobediência permanecia tão dura como a dureza do asfalto. Pouca gente caminhando. Também era muito cedo ainda. Os bem-te-vis cantavam que era uma beleza! O sol já despontava numa explosão de luz. Diante de tanta beleza, de tanta exuberância, esqueci o aviso interior, esqueci o acidente previsto e fui andando em ritmo de marcha, quando, de súbito, fui sentindo uma forte tontura, como se um enxame de abelhas tomasse conta do meu cérebro.

Não cheguei a tomar consciência da queda, pois o impacto me deixou desacordado. Tudo foi tão rápido. Lembro-me que ainda procurei me apoiar no solo com as mãos. Daí, então, não senti mais nada. Quando acordei já estava numa cama de hospital com o braço no soro. E o resto conto depois...


Quarto de Hospital

Quando despertei da síncope me vi cara a cara com uma enfermeira procurando uma veia no meu braço para receber o soro. Aí me deu um desejo enorme de sorrir. Achei-me ridículo com aquela camisa e calção esportivos, deitado num leito de hospital. A vida, às vezes, se torna cômica. Sentia uma forte dor de cabeça. E me veio logo esta indagação: como estaria o meu rosto?

Ah, um espelho!... Não custou muito e ei-lo nas minhas mãos. Vi que o tombo no asfalto foi para matar. Um enorme hematoma junto do olho esquerdo dava a medida do acidente. Coisa para lutador de boxe.

Cadê aquela voz interior que me advertiu da ocorrência? Por que a desobediência? Orgulho, teimosia, falta de fé? Como somos surdos às nossas intuições! Mas de quem foi a culpa do acidente? Da vida? Não. A culpa foi minha. Sou o responsável por tudo que me acontece. Daí a necessidade de um permanente estado de oração e vigilância, como ensina o Evangelho.

A voz interior cumpriu com a sua missão. Diante da minha desobediência, veio o respeito ao meu livre-arbítrio. O homem é livre para semear e obrigado a colher. Está aí um princípio de justiça admirável.

Manhã de sol muito bonita e eu num quarto de hospital, vestido de atleta, com um hematoma no rosto e alguns ferimentos! E olha que, com todos esses anos de vida, aquela era a primeira vez que eu me internava num hospital. Só mesmo um acidente, porque de doença eu ainda sou virgem.

Mas por que as tonturas? Por que o acidente? A gente deve estar sempre interrogando os fatos. Como estava sendo a minha alimentação? E o meu peso? A balança todos os dias me dizia que eu estava ficando gordo. A balança só não. Alguns amigos, durante o cooper, aludiram à minha obesidade.

“Cronista, você está ficando gordo!”; “Olhe... a barriguinha está crescendo.” - era só o que ouvia. E eu terminei por me aborrecer com essas intromissões, esquecido de que os outros são o nosso melhor espelho. Fiz uma reflexão e cheguei à conclusão de que eu estava abusando da alimentação. Logo eu, um macrobiótico...

Não fazia uma hora de internato hospitalar, e eu já doido para me levantar, sair dali, ir para a casa. Saudade do meu jardim. Saudade do meu computador. Saudade da vida lá fora.

Hoje ninguém fica mais doente em casa. A medicina tradicional, manipuladora de mil instrumentos eletrônicos acabou com o internamento domiciliar. Até para morrer, inventaram os tais velórios fora de casa. Dão mais dinheiro. E cadê aquele médico da família? Um personagem em extinção, se já não se extinguiu. Hoje é tudo muito impessoal.

Fui informado que o neurologista iria me examinar. Mas o que mais me comoveu foi a visão dos queridos familiares. Quanta ternura nos seus olhares! Quanta preocupação! E logo me disseram que eu teria que me submeter a uma série de exames. Haja paciência! Não é sem razão que somos chamados “pacientes”.


Quem me trouxe para o Hospital?

Quando aquele homem me viu perdendo o equilíbrio e caindo no asfalto, não pensou duas vezes. Foi logo me acudindo. Eu estava como morto. Não me lembrava de nada. Ah, como eu gostaria de me ver assim! Que sádica autopiedade!... Por sorte, outro bom homem ia passando em seu automóvel, a quem o primeiro chamou pedindo ajuda. Fui carregado por eles até o carro. Colocaram-me dentro do veículo. Sem dúvida, disseram: “é melhor deixá-lo num hospital. De lá a gente telefona para os seus familiares”.

Curioso! Eu me lembro vagamente que dera o número do telefone de meu apartamento aos dois samaritanos. Eis outro milagre. Sim, o que esses senhores fizeram foi o mesmo que o “bom samaritano” fez a um homem ferido na estrada de Jericó, segundo a parábola do Evangelho.

Aqueles homens, sem me conhecerem, interromperam a sua caminhada, e trataram de me acudir, colocando-me num carro. Um belo ato de amor para com o próximo. E mais: depois que me deixaram no hospital e informaram a ocorrência aos meus familiares, ainda procuraram, horas depois, e também no dia seguinte, saber como eu ia. Usaram da mesma compaixão do samaritano. Portanto, a lição da parábola não é impossível de ser seguida.

Ao que tudo indica, eu estava apenas desacordado. E aqui para nós: foi um sono gostosíssimo. Se morrer for assim... Sem dúvida, meu espírito assistia a tudo em silêncio. O resto eu já contei. Vi-me deitado num leito de hospital, sem sentir grandes dores. Parecia que me haviam anestesiado. Ferido na testa, com um forte hematoma junto do olho esquerdo, e aquela paz dentro de mim. Decididamente, médicos de outra esfera estavam ali me assistindo. A voz interior que previra o acidente estava agora ao meu lado, sem fazer nenhuma censura, nenhuma reprimenda, e disposta a novos avisos, a novas advertências. A vida é mesmo uma grande escola. Estejamos mais atentos às suas lições. Lembram-se daquela fórmula do Mestre? “Orai e vigiai para não entrardes em tentações”.

Mas ao que fui informado, os exames não deram nada. Eu não sei se os médicos gostaram disso. Que seriam dos hospitais se os pacientes não esquentassem seus leitos? Iriam à falência. Um homem com a idade que tenho (tenho mais de cinqüenta, leitor curioso) e não ter nada no cérebro, no sangue, no coração, é o que se pode chamar de um milagre de vida. E devo isso a quê? A uma vida sem excessos. Basta repetir que essa ligeira estada no hospital foi a primeira. E tudo em decorrência de um tombo, de uma queda, de um tropeço.

Mas o exame que eu desejo fazer agora é o exame de consciência. Esse não precisa de aparelhos eletrônicos. Não precisa de profissionais sem calor humano. Esse é o que a gente deveria estar sempre fazendo. Afinal, por que caí? Foi boa ou má a queda? O fato é para lamentações ou reflexões? Devemos estar mais atentos às nossas intuições? O acidente poderia ter sido pior? Se eu caísse numa avenida de muito movimento de automóveis? É preciso, vez por outra, formular perguntas à vida.


A Primeira Queda a Gente Nunca Esquece!

O especialista acaba de informar que eu tenho bico de papagaio. Um bico pequeno. Dir-se-ia de periquito. E – cá pra nós – acho tudo isso muito ridículo. É quase certo que a causa da queda tenha relação com a cervical. Daí essa dificuldade na circulação. Mas o resto está tudo muito bem. E viva o esqueleto do cronista, que caiu mas não se quebrou.

A enfermeira diz que talvez eu tenha alta no fim da tarde. Os exames foram ótimos. Agora estou me lembrando da minha primeira queda na vida. Foi quando eu tinha 5 anos, lá na Escola Modelo, que funcionava onde é hoje o Tribunal de Justiça. Lembro-me do meu uniforme – camisa branca e calça curta grená. Como todo menino, eu adorava correr, subir escadas, ganhar espaços. E foi numa dessas corridas que tropecei e cai, no corredor da escola. Muita gente veio me acudir. Mas o que mais me surpreendeu e irritou foi a atitude da inspetora, se não me engano chamada dona Laura. Mal me levantei, ajudado por algumas pessoas, ela gritou:

- “Levanta para cair de novo.” - e soltou uma terrível gargalhada.

Foi talvez a primeira sensação de ódio que senti na vida. Ah, como desejei que dona Laura caísse, um dia... Espero que minha praga não tenha surtido efeito. Pobre dona Laura!

A segunda queda foi na calçadinha da avenida Cabo Branco. Ia eu caminhando quando tropecei devido a uma diferença de nível do mosaico. Foi um quedaço, cujas conseqüências foram deploráveis. Já a terceira foi mais recentemente, coisa de 3 a 4 anos, ainda aqui em Tambaú.

Numa bela manhã de domingo, caminhava eu muito eufórico, em traje esportivo, com uma bolsa na mão, quando parou um carro bem perto de mim. E dentro dele um jovem que estava na traseira do veículo me pediu as horas. Aproximei-me do carro, quando, de súbito, o rapaz, de peixeira em punho, dizia que ia me matar. Sem dúvida era um assalto. Como agir? Vestido de atleta e com boa disposição física, disparei numa corrida que faria inveja a Felipe Massa. Como corri! Nada menos de duzentos metros. E, no final, a queda, a desastrada queda. Levantei-me com a camisa banhada de sangue. Todo o impacto foi na boca. Assim mesmo fui andando para casa, morto de vergonha. Felizmente, ninguém percebeu. Horas depois, eis-me num Pronto de Socorro de Fraturas.

Era a terceira queda. A quarta, que espero seja a última, todos já sabem como se deu, que estão relatadas nas crônicas anteriores (Tropeço na Caminhada I, II e III). Mas a vida é isto: uma caminhada cheia de tropeços, de obstáculos. Caem as pessoas, caem os prédios, caem as monarquias, caem os regimes políticos, caem as bolsas de valores, caem as cachoeiras, caem os aviões, caem as frutas maduras.

E foi graças à queda de uma maçã que o físico Newton descobriu a lei da gravidade. A Bastilha - quem diria? - um dia terminou caindo. Ninguém está seguro nesta vida. Os animais, nesse ponto, ganham para os homens, graças aos quatro pés. Somos todos bípedes indefesos.


Nada Acontece por Acaso

Será que tudo que acontece é necessário? Antes que você responda, vai aqui a minha resposta: acho que sim. Nada ocorre sem uma causa. É através do sofrimento, da dor, que o homem vai aprendendo, vai crescendo, vai se fortificando. O grande filósofo e pensador espiritualista Pietro Ubaldi escreveu que a dor surge para destruir a dor. Logo, a dor é necessária. E sendo necessária é bem-vinda.

Difícil esse discurso, não é? Poucos o compreendem. Se não fosse a dor, que seria da nossa saúde? É através dela que procuramos restabelecer a saúde. A dor é aquele sinal vermelho, avisando-nos de um perigo. Daí ser ingênuo, muito ingênuo aquele que procura esconder a dor através de analgésicos.

Imagine você se o painel de seu carro não o informasse de uma falha, de uma irregularidade, a exemplo de uma diminuição de óleo. Aquela luzinha que se acende no painel é necessária, graças a ela você pode tomar uma providência. Pois assim é a dor. Sua função é de advertência, de aviso. E quem avisa - diz o ditado - amigo é.

Com essas considerações, chego à conclusão que aquele acidente ocorrido comigo não foi em vão. Talvez uma benção. Deus escreve certo por linhas tortas? Eu acho que a caligrafia divina não tem nada de torta. Torta é a nossa visão.

Vejamos o aspecto positivo do acidente. Graças a ele, vi-me forçado a fazer um check-up, coisa que jamais faria espontaneamente. Mas com a queda, e conseqüentemente, com a minha internação num hospital, fui forçado a uma revisão geral do organismo. Na condição humilhante de paciente, não adiantaria o meu protesto. Nem sequer o médico me perguntou se eu queria fazer exames.

Todo paciente é um submisso, um pobre diabo sem vontade. E quando cai numa UTI aí sim. Nem visita recebe mais. Fica ali rodeado de fios e aparelhos. E o pior é que quando seu cérebro pára, assim mesmo ele continua mecanicamente vivo, o que não deixa de ser uma vantagem para o hospital. O paciente é um hóspede de um hotel que se chama hospital. Aliás, a palavra hospital etimologicamente vem de hospedaria ou hospedagem. Assim como um hotel não gosta quando um hóspede sai, o mesmo acontece com um hospital.

Mas esse gosto eu não vou dar ao dono do hotel. Ao que tudo indica, daqui a algumas horas, eu estarei fora deste hospital, ou melhor, desta hospedaria. E me vem agora um forte sentimento de autocomiseração. Tive pena de mim deitado no asfalto, enquanto o mar, perto, se desmanchava em espumas e os bem-te-vis cantavam soltos na praia. Tanta beleza na manhã e eu estirado no asfalto duro. Como a vida nos impõe certas situações! Mas, afinal, eu não fui avisado? Fui, sim, e agora estou pagando pela desobediência. Não adianta reclamar. Reclamação não resolve. O que resolve é a reflexão seguida da ação. Valeu o que aconteceu. Sejamos menos surdos e menos cegos.

O sofrimento tem uma grande vantagem. Ele nos força a refletir sobre a vida, coisa que não fazemos quando estamos nos divertindo. No prazer, sobretudo o físico, a gente não pára para pensar. A gente conversa, a gente bebe, a gente canta, a gente dança, a gente solta gargalhadas, e nada de uma reflexão. Esta surge com a dor. A dor que chega para acabar com a dor, segundo Pietro Ubaldi.

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