A casa sucumbia entre as sombras do arvoredo frondoso. Verde escuro e úmido envolvia coisas e viventes, num silêncio de igreja abandonada. Só não era proibido respirar.
Engenho parado, casa de farinha parada, os caminhos despovoados, céu e terra numa desolação que começava pelas folhas de cana. Tudo proibido.
Turgis Fils
— O que é regalo, mãe?
— Regalo é doce, banho, barriga cheia...
Foi a primeira vez que ouvi falar na palavra côdea. A Imitação de Cristo, livro santo que regia as abstinências da família, permitia, no café da manhã, apenas uma côdea de pão. Dormi na véspera sonhando com côdea que iam servir logo cedo. Na hora foi que vim saber, contrafeito, que côdea era casca, pão tirado o miolo, sem recheio nem manteiga. Reneguei da novidade, mas me advertiram que era um pequeno sacrifício comparado com as torturas a que iam submeter o Senhor, mais à tarde.
“Não fica bem, filho, a gente saciar todas as vontades da carne quando o Homem que se deu por nós há de passar as maiores agruras”.
Turgis Fils
Na primeira queda havia um homem de chibata na mão direitinho seu Ambrósio.
“Mas logo seu Ambrósio, um homem tão dado?”
— Seu Ambrósio tava no meio, mãe?
— No meio de que, menino?
— Dos que deram em Cristo?
Os pés de mangas pejados, o estômago roncando, mas nada de regalo enquanto durasse o sofrimento do Senhor. Entre o café da manhã e o almoço, apenas água. Menino não podia comer doce, rapadura, frutas, nem brincar com alarido. Tudo calado e penitente enquanto durasse o santo sofrimento.
Turgis Fils
— Coma pouco, filho. É desumano assistir ao sofrimento do Senhor de barriga pela boca.
O Senhor ia morrer às quatro da tarde. A terra havia de se envolver em trevas e um relâmpago fulminante cortaria os céus no instante do último suspiro.
— Aqui também vai ficar assim, mãe?
— O coração é que deve ficar, filho.
E ficou até hoje.
(Do livro do autor “Com os Olhos no Chão”)