Há na língua latina uma frase afirmando que o nome é profecia – Nomen omen. Mais do que uma frase, existe aí um vaticínio, em que muitas pessoas, consciente ou inconscientemente, acreditam. Haveria, portanto, um desejo de ascensão, de engrandecimento, importância ou nobreza, nos nomes esdrúxulos ou compridos, que os pais colocam nos filhos. Mesmo nas camadas mais pobres da população, as “marias”, os “josés”, os “joões” estão rareando e cedendo espaço para nomes exóticos, muitos aparentemente em uma língua estrangeira, sendo a inglesa a mais requisitada, embora nem sempre seguindo o padrão gráfico ou fonético exigido por aquele idioma. Nas classes mais abastadas, então, é quase uma regra os nomes ditos sofisticados e, evidentemente, longos, para marcar uma ancestralidade do que se habitou chamar “família tradicional”, ignorando-se que, por definição, a família é tradicional, vez que se trata de uma transmissão entre gerações. Não importa. A essência sempre vale menos do que a casca.
Abordo esse assunto, motivado pela notícia do bizarro caso de um juiz que, durante 40 anos, usou um nome falso, passando-se quase por um nobre inglês, cuja fraude foi detectada casualmente. O interessante é que aqui, nesse caso específico, se aplica a ironia de Nelson Rodrigues, ao dizer que o brasileiro tem “complexo de vira-lata”, por querer valorizar e adotar o que é alienígena, em detrimento dos nossos valores e de nossa cultura, aí incluído o maior de todos os traços culturais de um povo, caracterizador de seu perfil: a língua. Que o diga a famigerada expressão fake news, propalada pelos quatro cantos do mundo, substituindo o nosso bom e inequívoco vocábulo mentira ou, melhor ainda, notícia falsa. Acrescente-se, embora seja o óbvio ululante (obrigado, mais uma vez, Nelson Rodrigues), que aqueles que esbravejam contra esse odioso e odiento termo, desagregador de civilizações e assassino cruel da democracia pura e jamais conspurcada, são, via de regra, os que mais espalham mentiras. Mentiras das mais cabeludas.
Voltemos, no entanto, aos nomes, aos ditos antropônimos, para parecer mais vetusto e erudito. O referido juiz usou um nome que, só de ler ou de escutar, soa ridículo e falso como uma nota de 3 brics: Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield. Atenho-me apenas a dois dos nomes, Lancelot e Canterbury, o que faz do dito cujo um chauceriano cavaleiro da távola redonda, por mais quadradas e sem humor que sejam as tradições legais de nosso Brasil varonil.
Contorci-me para não usar o chavão, mas vamos lá. Um chavão, muitas vezes, vale mais do que uma tese de doutorado e do que as fabricadas interpretações a contrapelo do bom senso. Este fato, caríssimos leitores, não é senão a realidade imitando a ficção. Para não nos alongarmos muito, do contrário ninguém presta a devida atenção, vamos nos ater a dois casos ficcionais. Um se encontra no maior dos romances contemporâneos de nossa literatura – Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro –; o outro, em O monge de Cister (1859), do monumental Alexandre Herculano. Comecemos pela prata da casa.
Na narrativa de João Ubaldo, existe um personagem que, a rigor, se chama Amleto Ferreira, mulato, que não se conforma com a sua condição e sonha com o embranquecimento, em todos os sentidos, seu e da sua família. Amleto, que já não é um nome comum, aportuguesado de Hamlet, não deixa de fazer tocas diárias de babosa, para com elas dormir e alisar o cabelo; inventa não só uma descendência inglesa, mas constrói um nome inglês, e concede a si próprio um título de Comendador. Só o dinheiro não lhe permitirá a ascensão social desejada.
Ao prenome, Amleto, ele pespega um Henrique, da nobreza mais ancestral, remontando a D. Afonso Henriques, o fundador do reino português. Depois, enfia um Nobre, para ratificação dessa nobreza d’antanho; o Ferreira vem atrelado por um hífen ao Dutton, o nome inglês desse novo e florescente ramo anglo-luso, tudo de acordo como sói acontecer entre as famílias autodenominadas importantes. O resultado é o pomposo Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton, cujos filhos não terão nomes menos pompo-adiposos, como Bonifácio Odulfo Nobre dos Reis Ferreira-Dutton, palavroso poeta romântico de linguagem empolada. Eis a cara do Brasil, que insiste na casca, achando que cortiça é melhor do que sucupira.
Com relação à obra de Herculano, O monge de Cister, o refinamento na ascensão pelo nome é maior, porque se associa também a um saber que não corresponde à situação. Ou seja, pompa e circunstância estão dissociadas, mas funcionando para o vulgo, com uma solidez adamantina. Já perceberam que o novo-rico, não se contenta em esfregar as suas posses e ostentar prodigalidade, buscando uma erudição que não tem? Inventei um nome para isso: Síndrome de Trimalquião. Mas deixemos de lado Petrônio, arbiter elegantiarum, e o seu Satyricon, e voltemos a Herculano.
A exemplo de Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton, numa deliberada inversão temporal, o licenciado Mem Bugalho, de alcunha Pataburro, de origem humilde, como denuncia o seu epíteto, depois que entra na Universidade de Lisboa – a história se passa na época de D. João I, o mestre de Avis, portanto, entre o final do século XIV e o início do século XV –, Mem demonstra algumas propensões eruditas, alardeadas pelo Reitor da Colegiada de Santa Maria de Celorico, “assaz duro da orelha latina” (Capítulo XI, Doctor Mater-Galla, p. 515), não se cansando “de elogiar o licenciado pela sua proficiência na língua do Mantuano” (idem), entenda-se o poeta Virgílio. Mem Bugalho começou transformando a alcunha Pataburro, em um autêntico nome da língua de Cícero, transformando Pata em pes (pé) e burro em asinus (asno), invertendo os termos para Asinipes, de modo que, de início, passou a vislumbrar um nome meio macarrônico Mem Bugalho Asinipes ou Dictus Asinipes.
Mem não cessou de ruminar uma maneira de resolver o imbroglio linguístico e chegou a uma brilhante conclusão. O nome Mem, diante da rápida prolação lusitana da época, se aproximava bastante da pronúncia de mãe. Era só trocá-lo, pois, pelo termo latino, mater, ainda muito corrente na época. Como bugalho era o nome dado ao fruto do carvalho, Mem empregou o mesmo recurso para o nome mãe e verteu o termo bugalho, cujo nome em latim é galla. Foi assim que o humilde licenciado Mem Bugalho, dito Pataburro, passou a assinar e a ser conhecido como Doctor Mater-Galla, Dictus Asinipes, conhecedor do Direito e da língua de Ovídio e quejandos. Nada como um nome bem escolhido, embora fraudulento, para conceder ao homem um quê de nobreza e erudição (idem, p. 517):
“As palavras Doctor-Mater-Galla-Dictus-Asinipes, escritas em letra grande e garrafal no fundo de um pergaminho, davam às suas sentenças uma solenidade, um ar de mistério científico, um grandioso, que infundia santo e salutar temor na gente de Celorico, embora no trato ordinário, e sobretudo pelas costas, lhe chamassem o Doutor Pataburro.”
O nome é, pois, profecia. Necessitamos, no entanto, conhecer como funcionam os mecanismos proféticos de Apolo, cujo epíteto Loxias (Λοχίας), significa oblíquo. As profecias nos dizem mais do que, na realidade, expressam, nem sempre sendo absolutamente boas ou más. A ascensão forçada pelo nome pomposo não exclui a queda ou o ridículo, que se traduz no riso e no tratamento chão dado na ausência daquele que se julga muito importante: Asinipes, apesar da impressão fonética que causa, nunca deixará de ser um pé de asno ou um pataburro maquiado.
Enquanto na ficção o personagem fraudulento se eterniza, ainda que por intermédio da ironia, os da vida real já tiveram, como diz o Evangelho, a sua recompensa aqui, no gozo efêmero da gloríola vã. Mais dia, menos dia, o seu destino é o esquecimento.