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Não. Não falo da Laura cantada por Chico e Francis Hime. Aquela que será loura como as Claras. Será moura como as Mauras. Será ruiva...

De Lauras e Terezas

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Não. Não falo da Laura cantada por Chico e Francis Hime. Aquela que será loura como as Claras. Será moura como as Mauras. Será ruiva como as Rosas, ou Cecílias, ao que prenunciam os avós Francis e Olívia, seus compositores. Nem falo da Lady a quem, em sua aflição, Roberto pediu: “Me leve para casa, me abrace forte, me cante outra vez”.

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Refiro-me, isto sim, à Laura de Vicente Celestino, tão antiga quanto antigo me fazem os anos que carrego na alma e no lombo. A Laura do vale em flor, onde a fonte cantava, onde o sol banhava a estrada. A Laura com um sorriso de criança, uma flor nos cabelos e promessas de amor.

É desta Laura de quem, agora, trato. Dela e de seu drama. Da sua despedida com lenços e gemidos, da sua vida no asfalto, dos bares, das taças de dor. Dela, sim, para quem um coração agoniado então perguntava: “Laura, o que é da rosa nos cabelos, o que é do vale sempre em flor, o que é do teu sorriso, o que é do nosso amor?”.

Poucas vezes, uma tragédia humana terá tido história tão concisa, começo e fim em tão poucos e curtos versos. A Conceição de Cauby, a que vivia a sonhar com coisas que o morro não tem, teve a infelicidade cantada em frases mais longas, teve história mais comprida. Fez-se o hino desse moço e peça obrigatória em seus shows mesmo quando, na fase mais difícil da carreira, ele se via obrigado a cantar em restaurantes e clubinhos do interior. Ou cantava Conceição, ou alguém tacaria fogo no recinto.


Espero que a menina de Cartola, antes da partida, haja atendido aos apelos de um pai cujo coração se arrebentava: “Ainda é cedo, amor. Mal começaste a conhecer a vida”. Vi um americano da gema derramar-se em lágrimas ao reagir à canção com a qual o bom e velho Cartola, violão em punho, tentava atrasar a despedida da filha. O poeta, de fato, fizera uma música universalmente bela, única e tocante. Perdas, minhas e meus amigos, doem em qualquer um, fale o idioma que falar. Dono de canal no YouTube e apaixonado pela música, pela gente e pelas paisagens do Brasil, nosso irmão do Norte terminou por arrumar as malas e se mudar para o lado de baixo da Linha do Equador. Não me perguntem por qual razão escolheu Goiânia, na beirada de Brasília. Eu não saberia responder.


A Laura de Vicente chegou-me num sopro de vento, agora há pouco, quando eu tinha o coração mole (não conto a causa) e não mais lembrava dela. Veio da varanda de um vizinho, no prédio onde eu moro. E me invadiu a alma. O diabo é que assim o fez de mãos dadas com Emílio Santiago, dono de uma das três mais belas vozes masculinas do cancioneiro nacional, com o perdão de Vicente Celestino, o primeiro intérprete.


Imediatamente, interrompi a audição de Pascal Lottaz, um dos mais íntegros e capacitados analistas da geopolítica, hospedeiro contumaz de ex-diplomatas europeus, asiáticos e americanos, de gratas expressões acadêmicas, ou de antigos agentes da CIA, para tratos das guerras modernas, tragédias, estas sim, coletivas.

Sem sair do sofá, controle remoto à mão, fui em busca daquele cantor e daquela Laura. Nunca eu a percebera tão real, tão humana. Vicente e outros, depois dele, não me haviam dado a percepção plena
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Fonte: Ytube
daqueles versos e daquela história. Emílio aguçou-me os sentidos para a exata compreensão da vida e seus infortúnios, de ganhos e perdas, de chegadas e partidas.

Os arrepios que tive, na ocasião, talvez decorressem da instrumentação simples: um piano dolente e primoroso, um piston com surdina, um tecladinho meio escondido num recanto, uma sala pequena, umas poucas pessoas. Um anjo com asas quebradas, ou dores outras, deve ter feito o arranjo daquele grupo e de suas notas. Não havia grande orquestração a me desviar da grandeza do intérprete nem da excelência dos três instrumentistas. Emílio, então, se fazia pleno e absoluto.

Infelizmente, ele, que nasceu para cantar, deixou esse mundão de Deus em 2013, aos 67 anos. Cultivou modos e gestos elegantes, técnica perfeita, timbre envolvente, domínio espantoso do ritmo. Seus agudos não feriam os ouvidos. Quando nos tons mais baixos nunca ia muito além de sussurros de veludo a ouvidos e corações.

Eu o comparo a duas outras enormes expressões da música brasileira: Dick Farney e Lúcio Alves. Nos anos de 1950, quando tinham fã-clubes aguerridos, a indústria fonográfica e a Revista do Rádio inventaram uma rivalidade que ambos desmentiriam, anos mais tarde, com a gravação conjunta de “Tereza da Praia”.


Diga-se, dessa última, que teve a sorte e o espírito avessos aos da infortunada Laura. Inverno com um, verão com outro, sem atrapalhar a amizade entre os que por ela se apaixonavam. Afinal, todos logo percebiam que a moça não tinha nem queria dono. Tereza era da praia e, não, de ninguém. Não duvido de que tivesse a alma boa e branda. Nunca seria a personagem traçada por Chico em seu “Folhetim”, a que dizia “sim” por coisas à toa: uma noitada boa, um cinema, um botequim. E que, por uma prenda qualquer, fazia as vontades, dizia meias verdades sempre à meia luz. Esta era indecente, cínica. Tereza era diferente.

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Perguntem a Jobim, que a esculpiu, repito, para a união de duas das três melhores vozes masculinas da história musical do País. Terceiro lugar para nosso Emílio, mas por razão meramente cronológica. Nascido em 1946, não tinha ele idade para o aplauso no Cassino da Urca, ou noutros velhos centros da boemia no Rio de Janeiro e, de resto, em um Brasil então mais próximo da poesia, do romance, da paz e da civilidade.

Como não desejo encrenca neste mundo já para lá de encrencado, esforço-me para acolher os palpites dos que pensem diferentemente de mim. E, em nome da cordialidade e da paz, permito-me o abraço caloroso nos seus ídolos. Vá ver, tenho o coração e as permissões de Tereza. Perdão, Braguinha e Alcir Pires. Eu ia esquecendo de vocês, escultores da bela e desditosa Laura.

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  1. Flávio Ramalho de Brito4/4/25 05:59

    Muito bom. Braguinha e Alcyr Pires Vermelho também são os autores de Dama das Camélias, música que foi elogiada por Villa-Lobos e que teve um excepcional registro feito por Caetano Veloso em uma homenagem a Fellini e Giulietta Masina.

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  2. Anônimo4/4/25 07:13

    Texto de mestre. Emoção e informação de mãos dadas, feitos namorados de antigamente. Leio você com gosto, Frutuoso. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  3. Texto telúrico primoroso, caro Frutuoso Chaves.

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  4. Anônimo6/4/25 11:44

    Muito bom, um domingo tranquilo e um texto de tanta beleza para viver mais uma semana. Vai o abraço, primo!

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  5. Humberto Pedrosa Espinola8/4/25 09:47

    O tema é precioso: uma ilustrada crônica musical, evocando Laura, Tereza, Conceição, Lígia, Luíza, e tantas outras musas inspiradoras da minha, da sua e de nossas vidas! E lembro que "Mulher", bela música de Custódio Mesquita (se não me engano), faz uma síntese de todas elas! Parabéns!
    Humberto Espinola

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