Telma Corrêa da Nóbrega Queiroz esteve várias vezes na capital francesa entre os anos de 1977 e 1984. Em “Cartas de Paris”, relata a sua reveladora e surpreendente experiência na Cidade Luz. O livro se constitui de textos que nos conquistam não apenas pela sinceridade, como também pelo manejo criativo da linguagem. Num estilo espontâneo e vívido, a autora nos faz partilhar da sua vivência no Velho Mundo, alternando as menções ao novo ambiente com referências a parentes e amigos que ficaram no Brasil.
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A veia crítica e o bom humor fazem da autora um personagem cativante ao registrar o “choque” por que passa ao chegar a Paris e se deparar com outros hábitos e outra mentalidade. É longo o processo de adaptação até que possa sentir-se uma “igual” ao perambular pelas ruas francesas. Paris, como diz numa das cartas à mãe apreensiva,
“não é um antro de libertinagem e de orgias como a senhora está pensando. É uma cidade como qualquer outra, claro que com suas características particulares, onde a gente pode encontrar todo tipo de coisa e de pessoas”.
Josh Withers
Os tipos mais curiosos com os quais ela se depara estão no hospital, mas não são os doentes e sim alguns professores por quem a jovem sente, no início, um misto de estranheza e admiração. Ainda imatura, não resiste a
“uma vontade enorme de rir (...) quando (vê) um bando de psicanalistas reunidos, muito sérios, muito elegantemente vestidos, com aqueles óculos de correntinha, muito concentrados, falando sobre o désir (não sei de quem?), sobre o transfert, sobre o moi névrotique et psychotique? Sobre o sujet freudien e daí desembestam num horror de nomes que eu acho engraçadíssimos apesar de lutar muito contra essa tendência.”
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A sua visão sobre os psicanalistas mudaria, mas o registro acima conta pela sinceridade e o espírito crítico, e termina enaltecendo a opção que ela viria a fazer. Em passagens semelhantes a essa, a autora transmite ao leitor isenção devido à honestidade com que avalia as várias correntes que dividem (e disputam) o saber sobre a alma humana. É impagável, por exemplo, a gafe quanto ao “baixinho” Lacan, que não antecipo para não tirar o prazer do leitor. Merece também referência a maliciosa ambiguidade com que ela descreve a apresentação a um dos luminares do hospital:
“Já fui também me apresentar a Daumézon. Ele me atendeu muito bem, me mostrou o hospital e vou começar a frequentá-lo, o hospital, não Daumézon, a partir de amanhã às nove horas.”
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À proporção que vão sendo escritas, as cartas se tornam hábito, companhia, e acabam ganhando a configuração de um diário. Nelas entram notícias sobre os membros da família – hábitos, trabalho, eventuais enlaces (e desenlaces) amorosos. Tudo isso entremeado com detalhes práticos e a menção a pequenas vitórias, como a propiciada pela redução do aluguel de um quarto – festejada, por sinal, com enorme alegria.
É visível o gradativo prazer que a autora sente em compor os textos. Com o tempo ela se torna solta, loquaz. De meios para reportar os acontecimentos, as cartas vão passando a instrumento de catarse. A vida solitária da estudante que está em outro país propicia a reflexão e um parcial ajuste de contas consigo e com os outros. No estrangeiro ela consegue avaliar melhor as pessoas, o lugar de origem, o significado da viagem que a fez atravessar o Atlântico para estudar no Velho Mundo. Mas, sobretudo, consegue ver melhor a si própria.
O processo, diga-se de passagem, é concomitante à psicoterapia a que veio se submeter menos por vontade do que por exigência da sua formação. Numa das cartas à mãe, ela dá ideia dos tortuosos desdobramentos desse processo.
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“Uma má notícia. Não vou poder continuar assistindo as consultas de Madame Doumic porque foram transferidas para a segunda-feira, mesmo horário das apresentações de Daumézon. Que pena!!! Meus pedaços estão recomeçando a se aproximar uns dos outros. O problema é que a cada vez que estão quase colados, algo acontece que separa tudo de novo, tornando o processo muito lento.”
As cartas são relativamente frequentes, sobretudo da parte de quem não está no Brasil, pois constituem uma forma de abrandar a saudade e mostrar que os laços com a parentela distante se mantêm fortes. Quanto às que recebe, a autora as deseja profusas e descritivas, e quando isso não ocorre protesta com veemência. A propósito do laconismo de uma delas, chega a escrever ao remetente:
“Não quero assim. Quero detalhes, fatos, acontecimentos, episódios, cenas, narrativas, reações íntimas e externas, tudo isso impregnado de fortes cargas afetivas. Gostou da última expressão? É a influência da psicanálise daqui.”
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Concorre para a sua incansável produção não só a afinidade que ela tem com as palavras, como também o já perceptível gosto pela psicanálise. É preciso falar, dizer e sobretudo escutar. Em várias cartas, ela critica as menções genéricas a lugares e pessoas. Chega a repreender numa delas a escolha pela adjetivação pouco elucidativa. “E isso é jeito de se falar de Natasha? Dizer que está interessante e simpática... É preciso descrever momento por momento a vida dela, e mostrar o que a torna interessante e simpática.” Nem a mãe escapa a esse tipo de cobrança:
“Sempre tem coisas acontecendo, mesmo que não sejam excepcionais. E eu quero saber de tudo.
E é preciso algo mais que uma simples e seca narrativa dos fatos.” Sem se propor a isso, a autora concentra nessas despretensiosas palavras uma importante lição para quem aspira a escrever textos literários. Mostrar, detalhar, concretizar noções abstratas é um dos segredos do estilo eficaz.
“Cartas de Paris” impressiona, enfim, pela franqueza e a honestidade com que Telma refere a sua experiência no estrangeiro. É o relato de uma aventura vivida por alguém de inteligência atilada e espírito corajoso. Há nesses textos uma “voz” que sabe ser séria ou sorrir, quando necessário, e por isso facilmente ganha a nossa cumplicidade.