Essa era uma morte anunciada. Afinal, o poeta de 87 anos estava enfermo desde 2017. Só não se imaginou que seria numa terça-feira de carnaval e a uma distância de pouco mais de um mês da partida de sua mulher, a também escritora Marina Colassanti. Duas perdas imensas para a cultura brasileira, cuja cena vem se esvaziando a olhos vistos dos grandes nomes que a preencheram a partir da segunda metade do século passado. Agora sem Affonso Romano de Sant’Anna, pode-se perguntar quem é o maior poeta brasileiro vivo.
Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colassanti ALMG
Maior, diga-se, não apenas na qualidade da obra, mas também no reconhecimento do público. Salvo engano, não vejo ninguém para ocupar esse lugar.
Alguém poderá citar Marco Lucchesi. Sim, tem uma obra de alto nível, sem dúvida, mas não é conhecido do público. Poderá apontar Alexei Bueno e teremos a mesma situação. Até mesmo Geraldinho Carneiro pode ser lembrado, mas o quadro é igual. A todos eles falta o selo da notoriedade junto ao grande público leitor. Sendo assim, o título de maior poeta do Brasil vai para uma mulher: a mineira Adélia Prado. O que é ótimo, diga-se passagem. Drummond e Affonso, que foram seus padrinhos literários, vibrariam. Tudo Minas Gerais, esse celeiro inesgotável de talentos. Itabira do Mato Dentro, Belo Horizonte e Divinópolis dando aos brasileiros parte da melhor poesia nacional de todos os tempos.
Comecei com Affonso através de sua tese de doutorado transformada em livro: Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1980), que comprei em Fortaleza, atraído mais pelo tema que pelo autor. Eu era um jovem, com cerca de trinta anos, mas já tinha me encantado com o poema “Os Sobreviventes”, de Drummond,
e não resisti ao livro que pretendia examinar toda a sua obra até então. Portanto, mergulhei nele de imediato, ainda no hotel, e com ele incorporei Affonso Romano de Sant’Anna ao altar de minhas devoções, o qual, além de crítico, era também poeta – e dos bons. E assim continuei pela vida afora, acompanhando-o em suas sucessivas publicações, que no fim chegaram a mais de sessenta títulos.
Vi-o duas vezes, mais ou menos de perto. A primeira, aqui, no auditório do CCHLA/UFPB, onde ele veio proferir uma palestra sobre José Lins do Rego, se não me engano. A segunda, no Rio, em um cinema de Ipanema, onde ele estava com a esposa, Marina Colassanti, a conversar animadamente com outro espectador, João Roberto Marinho, herdeiro da Globo. Coisa tipicamente carioca, esse congraçamento informal das pessoas de tribos diferentes. Nas duas oportunidades, observei o poeta à distância, respeitando sua privacidade, mas na segunda, quando já o admirava muito, confesso que fiquei levemente enlevado em minha contemplação de assumido fã. Não tive a sorte de meu amigo Hildeberto Barbosa Filho, que o conheceu pessoalmente e com ele teve várias conversas amistosas. Era um excelente “papo”, segundo o poeta paraibano.
Imagens: Civ. Brasileira + TV Assembleia MG
Dá para se ver claramente em sua poesia que ele era um discípulo de Eros. Um aplicado discípulo, a bem da verdade. Bonitão, famoso e brilhante, deve ter arrebatado o coração de muitas alunas suas na PUC-RJ. Comentava-se que era um contumaz namorador, o que, para mim, só aumentava o seu cartaz. Não sei como a companheira administrava isso tudo. Pelo visto, com algum superior espírito esportivo, o que prova sua sabedoria de mulher que se sabe a primeira entre todas.
Entretanto, a partir de uma certa fase da vida, quando o crepúsculo já se anunciava nos primeiros cabelos brancos, Tânatos passou a comparecer com frequência à poética affonsina. Em 1999, ele publicou Textamentos (Editora Rocco, Rio de Janeiro), cujo título já diz tudo sobre o conteúdo do livro. Na verdade, trata-se de uma espécie de testamento precoce, pois à época ele ainda estava em plena e viçosa maturidade. Uma atmosfera de despedida e de melancolia atravessa, de modo geral, os poemas que compõem o livro. O leitor sente, indisfarçável, a presença de Tânatos, o que surpreende, já que até então o poeta dedicava-se mais ao amor e à política (seu poema “Que país é este?” marcou época). Peço, pois, permissão ao leitor para compartilhar aqui alguns poemas desse livro emblemático, um divisor de águas. O primeiro, “Velhice erótica”, marca uma certa transição do poeta, que começa a adentrar a velhice, mas ainda goza uma certa plenitude física. A despeito disso, ele sabe que o entardecer está próximo, a dois passos apenas:
Estou vivendo a glória de meu sexo
a dois passos do crepúsculo.
Deus não se escandaliza com isto.
O júbilo maduro da carne
me enternece.
Envelheço, sim. E
(ocultamente)
resplandeço.
YT Global Ed.
É uma espécie de ocaso. Agora, em “Diálogo com os mortos”, ele já admite a morte à sua presença, é o começo de um longo namoro:
Começo a conversar com os mortos amiúde
e vejo que têm muito a me dizer.
Estão sempre à minha espera
numa página de livro ou na memória.
Converso com eles
como se o assunto com meus contemporâneos
já se tivesse esgotado,
como se só eles, os mortos,
tivessem algo novo a me dizer.
YT Global Ed.
E para concluir esta pequena amostra, o poema “Sedução mortal”, que explicita o ar de despedida que precocemente o poeta apresentava:
Olho as coisas com um desprendimento,
com uma ternura angelical.
Olho-me já de longe, etéreo,
um centímetro acima do instinto vital.
A morte me seduz
e a ela me consagro
com um desprendimento fatal.
Aí já era de fato o início do adeus. De Eros para Tânatos, uma caminhada muito claramente assumida, sem temor. Pode-se afirmar que o poeta soube preparar-se para acolher a finitude, como se de certo modo cansado da vida, ele que viveu tão intensamente. É como se pressentisse a terrível enfermidade que o tiraria da vida antes de matá-lo efetivamente.
Affonso Romano de Sant’Anna foi professor, crítico literário, ensaísta, poeta e cronista, além de refinado viajante. Presidiu com notável êxito a Biblioteca Nacional e mais de uma vez teve seu nome cogitado para o Ministério da Cultura. Foi um intelectual completo e atuante. Faz e fará muita falta neste Brasil que se empobrece culturalmente, repito, a olhos vistos.