Quem hoje busca, verdadeiramente, conhecimento? Quem, no Brasil, procura, sinceramente, o saber? Quem, pelo Nordeste, apreende ...

Oriano de Almeida: um legítimo valor nacional!

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Quem hoje busca, verdadeiramente, conhecimento?

Quem, no Brasil, procura, sinceramente, o saber?

Quem, pelo Nordeste, apreende por meio do obstinado estudo, num lugar onde as paradisíacas praias concorrem com o mínimo
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tempo necessário para o assentar de idéias e conceitos?...

Quem, ao estudar, tem se esforçado por achar nas Artes valores, paradigmas, exemplos de notáveis brasileiros, numa sociedade que relega seus maiores?...

Quem, num mundo hedonista, tem se incomodado com sua própria ignorância?

Na era da pós-modernidade — em que cada um liquefaz-se em sua “verdade” própria, encontra-se fácil subprodutos como papéis higiênicos com péssima qualidade ou garrafas d’água de plástico finíssimo que mal se põem em pé e que não cumprem com suas funções ou trazem doenças como favorecimento de certos tipos de câncer — vemos o desenfreado desejo de lucro em detrimento do cultivo da vida interior e, decorrente deste Zeitgeist, vultos como Oriano de Almeida somem como se fossem desnecessários. As famílias têm-se tornado redutos chucros; pais que perderam o elo com a verdadeira Educação, já há algumas gerações, vão repetindo os desvalores sociais e prescindindo dos exemplos que nomes como Oriano, e outros tantos grandes pianistas, dão ao país e à sua população.

Na contramão de tudo isto, Oriano, paraense nascido aos quinze de julho de 1921 foi introduzido aos mistérios pianísticos por ninguém menos que sua mãe. Aliás, reconhecer o berço é o primeiro passo para entendermos, não só o tempo geracional mas
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Oriano de Almeida ▪ 1921—2004
as raízes que em cada família ganham peso e influência. Aos cinco anos ele já tocava um pouco, e sua família é por ele próprio reconhecida como a razão do ambiente suficiente ao despontar virtuosístico: “minha mãe tocava piano, meu pai tinha sido, na mocidade, um ator teatral e minha avó materna, cantora de ópera; ela era italiana e tinha vindo para o Brasil numa companhia lírica. Então eu tenho impressão que esses fatores, sabe, influenciaram no meu gosto pela música desde muito cedo ... tanto que eu comecei a estudar cedo. Talvez assim aos sete anos de idade eu já tinha uma professora de piano. Comecei, inclusive, a estudar as primeiras notas com minha mãe; depois esta professora em Belém, que eu lembro do nome dela, era a senhora Helena Mindelo”.

Ora, é mais que lícito e urgente pensarmos por que escolas e igrejas não possuem pianos ou coros dignos, e as que sabidamente possuíram num passado não tão distante, passado em que Oriano viveu e brilhou, deixaram de ter, de manter este incomensurável patrimônio. De igual maneira, governos, em todas as suas esferas, e mesmo grandes empresas perderam-se sem o referencial de preservação, de conservação. O que é antigo soa hoje ao que mal percebe como algo superável: e é aí onde nasce a auto destrutibilidade de um povo que implode-se pela colonização internética do lixo que nos é empurrado goela abaixo.

Oriano foi Artista de grande quilate; não só pianista com notável carreira mas um homem engajado com a docência e as preocupações estéticas de seu tempo. Dono de uma eloquência, vocabulário e compostura admiráveis, subscreve o manifesto do grupo Música Viva, encabeçado por Hans-Joachim Koellreutter, ao lado de outros notáveis nomes como Aldo Parisot, Cláudio Santoro — que além de distinto compositor e regente foi também violinista e por meio de quem Oriano se aproximou do movimento —, César Guerra-Peixe, Egydio de Castro e Silva, João Breitinger, Mirella Vita e o próprio Koellreutter, cujo texto serve de marco para a segunda fase do Momento Música Viva:

Manifesto:

O Grupo Música Viva surge como uma porta que se abre à produção musical contemporânea, participando ativamente da evolução do espírito.

A obra musical, como a mais elevada organização do pensamento e sentimentos humanos, como a mais grandiosa encarnação da vida, está em primeiro plano do trabalho artístico do Grupo Música Viva.

Música Viva, divulgando, por meio de concertos, irradiações, conferências e edições a criação musical hodierna de todas as tendências, em especial do continente americano, pretende mostrar que em nossa época também existe música como expressão do tempo, de um novo estado de inteligência.

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Hans-Joachim Koellreutter ▪ 1915—2005 ▪ Arq. Nacional
A revolução espiritual, que o mundo atualmente atravessa, não deixará de influenciar a produção contemporânea. Essa transformação radical que se faz notar também nos meios sonoros, é a causa da incompreensão momentânea frente à música nova.

Idéias, porém, são mais fortes do que preconceitos!

Assim o Grupo Música Viva lutará pelas idéias de um mundo novo, crendo na força criadora do espírito humano e na arte do futuro.

O manifesto é de uma data emblemática, primeiro de Maio de 1944, e é possível pensar no clima em que estava não só o Brasil mas todo o Ocidente com a Segunda Grande Guerra. Estes foram anos do auge pianístico de Oriano que só diminuiu o ritmo de viagens e concertos ao fim da década de 1960. É, nisto, um fato mais que notório: um pianista de renome, cônscio de seu tempo, com entranças na crítica e no posicionamento estético que se imprimiam em crenças e valores; algo hoje bastante diverso do que costumamos ver desde que a universidade abocanhou as faculdades de artes.

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Oriano de Almedia em recital no teatro Alberto Maranhão / Fonte: Tribuna do Norte, via Movimento Sonoro.
Não se trata de saudosismos ou mera comparação, trata-se de observar certos parâmetros de caráter cada vez mais raros ou ausentes na atualidade. Ainda que o Grupo Música Viva tenha agasalhado a idéia do novo, o diferente, é preciso pontuar que esta novidade defendida parte do pressuposto humano, espiritual, criativo e artístico. Diametralmente oposta ao ditame comportamental, após a existência dos tais smartphones — se o aparelho é smart quem o manipula, passivamente, seria o dumb?... — e, nessa esteira está a IA, os tais algoritmos das mídias sociais, a robótica e a vida maquínica e internáutica que se vive — ou arremeda-se da vida real — sob intensa dependência transtornadora da essência e da vida interior. Seriedade e formalidade são, hoje, em diversos recintos, inclusive no escolar, quase uma ofensa.

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Íris Bianchi e Oriano de Almeida
Em 1972, o Instituto Chopin de Varsóvia conferiu a Oriano o título de “Embaixador de Chopin no Brasil”. Décadas antes, em 1949, ele havia sido laureado com o Diploma Especial no Concurso Chopin de Varsóvia; até hoje só ele e mais três outros brasileiros receberam láureas similares. Não tive o privilégio de conhecê-lo mas meu professor, Maurílio José Albino Rafael, por meio de quem ouvi falar pela primeira vez sobre Oriano, mencionava a inesquecível noite chopiniana no Teatro Santa Roza. Depois, em aula com a pianista pernambucana Elyanna Caldas, soube de sua proximidade e grande amizade — é de Elyanna, também, a menção de sua esposa, a pianista Íris Bianchi e que quase não há quaisquer menções ao seu destacado talento e carreira, sequer gravações disponíveis ao lado de Oriano. E, minha grande amiga e pianista Grace Smith, potiguar, pode compartilhar-me do desfrute de sua presença; ela que já gravou algumas de suas singelas e agradáveis peças. Destes convívios relatados surge um Artista de marca maior, um gentil-homem, um raro exemplar de hombridade e honradez, além da extrema cortesia de uma educação pretérita cada vez mais rara de se encontrar por estas terras nossas.

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Grace Smith ▪ Div.
Já em sua época, o próprio Oriano reclama com saudade de tempos idos, referindo-se ao cotidiano paulistano em que conheceu a pianista Magdalena Tagliaferro, com quem manteve cordial relação por toda vida. Ele escreveu o livro Magdalena, dona Magdalena, publicado em Natal em 1993, ano do centenário do nascimento de sua mestra. É uma deliciosa leitura, em forma de homenagem, com lembranças de um tempo que vai de 1940 a 1970:

São Paulo de bondes vermelhos, ônibus prateados, Mário de Andrade que a gente encontrava como um simples mortal na av. São João e conversava. São Paulo de mansões na Angélica e Paulista onde a gente conversava e jantava com seus ricos donos.
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Ah, os belos tempos. Pois, comodamente sentado num dos ônibus prateados circulando entre as belas mansões, deparo-me com um grande cartaz: Teatro Municipal – a empresa Viggiani apresenta Magda Tagliaferro – a Fada do Piano; ingresso à venda. À noite lá estava eu, na primeira fila do balcão, tendo como vizinho de poltrona o conhecido compositor mineiro, Fructuoso Vianna. Chegava a hora, afinal, de ver e ouvir a famosa pianista que os brasileiros chamavam Magdalena e os franceses Magdá. A impressão visual (agora ao vivo), foi bem favorável. Na semi-penumbra, silêncio, expectativa, ligeira oscilação na cortina, e ela surge sob aplausos, insinuante (meu padrinho tinha razão) ondulando o vestido prateado faiscante com decote à la grega, cabelos fulgentes cor de cenoura. Na distância e sob a maquiagem quase Folies Bergère, idade imprecisa, que logo o meu vizinho compositor tratou de esclarecer: “Não aparenta… mas é mais velha do que eu... deve estar beirando a casa dos cinquenta...”

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Magdalena Tagliaferro ▪ 1893—1986
Magdalena foi uma propulsora cultural no Brasil tanto como na Europa. Ela orientou Oriano durante alguns anos e, mesmo à distância, soube manter o cuidado para com seu amado pupilo com incentivos e conselhos. Aos trinta de junho de 1982 ela, em carta a Veríssimo de Mello, escritor natalense e amigo em comum, assim refere-se ao seu pupilo:

Como o invejo de ter tido ao seu lado meu querido, muito querido Oriano. Há tempos que não o vejo. Anda muito fugido... Se o Professor tem qualquer influência sobre esse bandido (!), faça-me o obséquio de estimulá-lo a me procurar. Sigo no dia 3 de julho para uma longa tournée na minha terra. Começo por São Paulo, porém estarei no Rio várias vezes entre 5 e 25 de agosto, onde Oriano poderá me encontrar na casa amiga da D. Marie da Penha Muniz.

Bem antes, em 1944, quando Oriano ainda tinha contato regular com sua mestra, ela envia-lhe recado de ano novo com preciosas recomendações:

Deixar de fumar; disciplina diária — horas certas cada dia para estudo, refeições, ginástica, passeios, estudo de línguas, harmonia, etc; deixar de lado namoros e outras tolices; preparar programa de atividades para os próximos seis meses, examinando todas as possibilidades: concertos, rádios e outros meios para assegurar sua vida material; preparar dois programas novos de recitais e dois concertos com orquestra.
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Conselhos de Magdalena Tagliaferro a Oriano de Almeida ▪ Arquivos UFRN / Via IPB
Estabelecer orçamento para o ano 1944, fixando 1º despesas a serem previstas, 2º receitas eventuais.

Não é necessário afirmar que estas valiosas orientações são indispensáveis em quaisquer tempos e, hoje, mais que nunca; diria até não só mas principalmente para artistas. Em grande medida, o pupilo certamente seguiu os conselhos recebidos: tornou-se homem íntegro e sério, difundindo a Música e o ensino musical por onde esteve. Foi também aluno, admirador e amigo de Câmara Cascudo, de quem soube absorver muito do conhecimento literário e histórico regional brasileiro. Escreveu outro livro interessante, sobretudo para iniciantes em Música e apreciação musical: Paris... Nos Tempos de Debussy que, na percepção do jornalista João Carlos Taveira, trata-se de livro sério e delicioso. Foi publicado em 1997, com apoio do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e do Banco Real. Numa era em que o desconhecimento é generalizado, bem fariam os bancos de hoje se reeditassem seus escritos em larga escala, para o uso sistemático nas escolas, quer públicas, quer privadas. Ele também publicou os trabalhos Música Através dos Tempos do Século XVIII ao Século XX, em 1991; Um Pianista Fala de Música, em 1996 e seguem ainda inéditos outros como Do Inverno ao Outono; Cenas Infantis; Contos, Apenas Contos; Primeiros, Únicos e Últimos Poemas; Pingos e Respingos e Ciclo Chopin.

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Imaginemos o Brasil sem funk, sem bondes dos tigrões, sem mulheres-fruta, sem lacraias, créus, sem mc’s, sem forrós de plástico, sem celulares, e sem o besteirol midiático e todo o excremento da cultura de massa que hoje assola, com grande força, a juventude. Um Brasil que ainda respirava os chorões nas esquinas, os programas de rádio que destacavam vozes expressivas, programas até mesmo de TV em que o piano aparecia e tinha vez, como no caso de sua participação no programa semanal O Céu é o Limite, de perguntas e respostas de grande audiência na década de 1950 e que lhe rendeu expressiva fama. Essa foi a nação de Oriano e o tempo dele de cujo espírito soube bem absorver. Claro que como Artista ele bebeu de outras e várias fontes culturais, e, como compositor, de modo singelo, expressou-se a partir de todas essas vivências.

No programa Memória Viva, dirigido por Jácio Fiuza Jr., produzido pela Tv Universitária da UFRN, e apresentado por Carlos Lyra, em 1983, numa hora de duração, vê-se um resumo da carreira de Oriano. A gravação inicia-se com a valsa em mi menor, opus póstumo, de Chopin e, em seguida o apresentador anuncia: “um virtuose interpreta um gênio”. Oriano gravou
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Waldemar de Almeida
a obra completa de Frédéric para a Rádio MEC — se ainda existente, nenhum pouco difundida pelas instituições de ensino. O programa segue e o próprio pianista conta o início dos estudos mais sérios, aos oito anos, com a chegada da Europa de seu primo que logo se torna seu padrinho, o maestro Waldemar de Almeida, fundador do Instituto de Música do Rio Grande do Norte, o primeiro naquele estado. Com seu primo, Oriano preparou-se pianisticamente, estudou com seriedade a base técnica e um considerável repertório e com Luís da Câmara Cascudo, história da música. Aos doze anos ele já recebera o primeiro diploma do curso inicial de música ofertado pelo Instituto. Bem orientado, Oriano tinha de seguir: com o amparo familiar, tão incomum hoje, e com reais mestres, não havia o que discutir sobre seu destino vocacional.

Em sua dissertação Oriano de Almeida (1921 - 2004): um estudo analítico-interpretativo e uma edição de quatro Prelúdios Potiguares, a mestra Igara Cabral reúne alguns dos programas impressos de seus recitais, inclusive o primeiro deles, realizado após o término do curso no Instituto, sob a orientação de Waldemar. Igara se equivoca na idade mas o próprio Oriano afirma tanto em entrevistas compiladas nessa dissertação quanto em outras oportunidades que foi aos doze, em Recife,
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Poster de divulgação do recital do pequeno Oriano (originalmente Oriane) de Almeida, em Recife, 19.03.1934.
o seu debut pianístico. Pelas contas vê-se que Oriano está correto e o programa ainda traz duas curiosidades: seu nome italianizado, que no programa Memória Viva Oriano só cita a troca quando da ida ao Ceará mas vê-se impresso que, desde o seu primeiro recital, esse “jogo de marketing” já havia sido pensado, provavelmente em função do quão esnobe eram as plateias brasileiras que preferiam o estrangeiro em detrimento dos valores nacionais (não mudou muito hoje em certos círculos sociais...). Outra peculiaridade é a anotação, à mão, de duas obras possivelmente tocadas de bis. Igara não se detém nestes importantes detalhes, talvez por não ser o foco de seu trabalho mas reúne informações relevantes que aqui cito:

Durante sua atuação em O Céu é o Limite, Oriano de Almeida respondeu sobre a vida e a obra de Chopin assim como executou diversas peças ao piano. Em Magdalena, Dona Magdalena, o pianista relembra este fato marcante de sua carreira:

Em certo período de minha vida, de repente, sem esperar, vi-me envolvido pela fama, endeusado em São Paulo com medalhas, diplomas, comendas, aplausos e... até pétalas de rosa caindo sobre minha cabeça no palco do Teatro Municipal. Toda responsabilidade terá sido dos milhares de telespectadores que, durante meses não desviaram olhos e ouvidos da TV7 Tupi, nos minutos em que eu aparecia no vídeo respondendo sobre a vida e obra de Chopin, no famoso programa ‘O céu é o limite’, produzido por Túlio de Lemos e apresentado por Aurélio Campos (ALMEIDA, 1993, p. 115-116).

Lendo os livros de Oriano e seus relatos é facilmente perceptível uma clareza auto analítica de um homem consciente das manifestações sociais e das relações humanas em que ele próprio se inclui e vê com emoções e reações.
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Oriano de Almeida / Fonte: IHG/RN (adapt.)
É como um alter ego que se critica sem pudores e que amadurece a cada comentário sobre si. De certa forma essa psicanálise é comum em grandes artistas e a obra de arte é o fruto ou o campo das considerações e conclusões sobre o tempo e a vida. A escrita composicional de Oriano, em face de sua própria interpretação, é tão comum quanto peculiar. Suas peças são honestamente singelas, todas elas carregam em si uma simplicidade, uma nudez temática, e uma elaboração despretensiosa, revelando um homem tranquilo, sem arroubos ou até mesmo alguém que sabe o seu lugar na história. Igara elenca o ciclo dos 20 prelúdios quanto às datas e aos locais onde cada peça foi escrita:

Os Prelúdios Potiguares apresentam uma equilibrada mistura entre as influências herdadas dos grandes mestres românticos e as sonoridades típicas dos temas folclóricos e populares da música nordestina. A respeito da obra, Guerra (2001) afirma: “[...] O romantismo está sempre presente e a facilidade ou exatidão para expressar determinadas situações leva o ouvinte a visualizar de uma maneira muito bela o quadro que ele tenta demonstrar”. A coletânea consiste em 20 peças compostas entre os anos de 1947 e 1982:

TÍTULOLOCALANO DE COMPOSIÇÃO
No Caminho do Sertão (n. 1) Natal – RN 1982
Lenda do Carreiro (n. 2) Belém – PA 1966
Toada Ingênua (n. 3) Belém – PA 1966
À Sombra da Velha Jaqueira (n. 4) Natal – RN 1982
Flor de Cactus (n. 5) Natal – RN 1982
Chorinho de Guarapes (n. 6) RJ 1967
Sequilhos e Alfinins (n. 7) Natal – RN 1982
Caiçara do Rio dos Ventos (n. 8) Natal – RN 1982
Sertanejo Cantador (n. 9) RJ 1948
Os Negros do Rosário (n. 10) Natal – RN 1982
Polytheama (n. 11) Paris – FR 1950
Saudades do Potengi (n. 12) RJ 1980
O Galinho de Santo Antônio (n. 13) Natal – RN 1982
Xarias e Canguleiros (n. 14) Paris – FR 1947
O Alvissareiro da Torre da Matriz (n. 15) Natal – RN 1982
Sarau na Rua da Conceição (n. 16) Natal – RN 1982
Comprai Juá Jucá (n. 17) Natal – RN 1982
Lamento da Senzala (n. 18) Paris – FR 1950
Natal (n. 19) RJ 1951
As Imburanas da Pedra Grande (n. 20) Natal – RN 1948

Dedicado a Nelson Freire, o primeiro prelúdio da série é um caminho criativo de um grande pianista em busca de inspirações telúricas, de uma cultura interiorana, sertaneja. O galope reiterado da mão esquerda perpassa a estrutura geral ABA onde
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Nelson Freire ▪ 1944—2021 / Decca Div.
a parte B é, na verdade, uma simples variação da A, com um jogo aumentativo dos valores da mão direita (de semicolcheias para colcheias). Oriano se vale de um recurso métrico onde a melodia, uma oitava abaixo, é desenhada com a mesma configuração interválica que vai, a cada repetição, acentuando-se de forma distinta: o número ímpar de notas (onze semicolcheias na parte A) se organizando numa métrica binária que só cabem 8. Este mesmo recurso na parte B é variado com colcheias — que na gravação do próprio Oriano essa sessão não corresponde às edições disponíveis exceto na própria dissertação de Igara que edita versão aproximada da gravação do compositor — e depois segue-se a repetição de um refrão acórdico, resumo harmônico de toda peça. Ao contrário do que pensa Igara, a obra não está em fá maior e sim nos modos mixolído e lídio sobre a finalis
da nota fá ou mi bemol que aparece não só como subtônica de fá mas ganha, no segundo tema, que completa cada parte, um destaque como se fora uma modulação passageira para retornar à tônica: todas as cadências e os refrãos que reforçam a harmonia modal afastam quaisquer identificações com a música tonal. O caminho, portanto, é um só: o galope vai trilhando a entrada do compositor pela terra seca, pelo chão batido, pela poeira musical que, aos poucos, e com muita alegria, o pianista chopiniano vai se deixando embebedar. É uma peça interessante, de audição fácil e inexplicavelmente não tocada, não exaustivamente conhecida, sobretudo nos programas das faculdades e cursos de piano pelo Nordeste; talvez daí uma das razões para o fracasso na existência de novos Orianos...


Em Saudades do Potengi o espírito seresteiro baixa no compositor que une seu conhecimento pianístico-romântico-europeu ao estilo saudosista, melancólico do cancioneiro brasileiro. As apojaturas e os retardos na melodia criam uma atmosfera contrapontística nostálgica que se alia a uma estrutura harmônica básica, tonal, e em modo menor. A expressividade com que toca Oriano — que também modifica a interpretação em relação à partitura disponível, e a gravação inicia-se cortada — imprime um misto de alegria e tristeza, uma saudade confortada no canto, como um Chopin brasileiro que se confessa ao piano em suas lembranças, mágoas, dores e recordações felizes de um passado que não volta.
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Rio Potengi, Rio Grande do Norte
Do tupi-guarani, a palavra potengi remete a "água ou riacho dos camarões" (através da junção dos termos potĩ "camarão" e y "água"). Ela dá nome tanto a um município com características peculiares pelos ferreiros que lá habitam, quanto ao famoso "Rio Grande", por seu vasto leito e extensão, sendo a origem do nome da então Capitania do Rio Grande. Certamente o pôr do sol é uma das recordações de Oriano do tempo que passou às margens do Potengi: as colcheias neste compasso ternário, articulado em um só pulso e sub-agrupadas como se fora um compasso composto, perfazem o ondular das águas no rio, uma espécie de valsa como que levando memórias, ou trazendo à recordação quando passam pelo coração do artista as águas da saudade: a sombra de Chopin é, pelas mazurcas ou valsas, uma alusão inequívoca, tanto diretamente, pelo domínio de Oriano quanto pela influência de sua obra na música brasileira dos séculos XIX e XX como um todo. A melodia é toda pensada a partir de graus conjuntos com esporádicos saltos, extremante cantável, uma letra não seria difícil de associar-se. Percebe-se os suspiros métricos com um fim com sexta adicionada e um gesto descendente em tom maior, apontando para a esperança. A peça é dedicada ao colega pianista, defensor da música brasileira, que também deu aulas em Natal, e tinha uma personalidade doce: Gerardo Parente.

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Gerardo Parente / Fonte: IPB
Igualmente, em Caiçara do Rio dos Ventos a alma chorosa é debulhada numa agógica da interpretação do pianista-compositor que se vê comum em um estilo próprio de uma época dos chorões, das serenatas, das cantigas e cantorias já perdidas em nossos dias. A métrica binária segue o mesmo raciocínio do acompanhamento do 12º prelúdio, marcando o ciclo com uma concepção coerente. São acordes dedilhados, um baixo andante que marca a cabeça ou a metade de cada compasso,
e uma melodia doída que se estrutura toda na dominante, grau estrutural na harmonia tonal que representa o conflito e, portanto, as vicissitudes da lida.A tônica, quando surge, é pontual, como respirações de frases ou partes e, ao fim, nos oito últimos compassos, vai, lentamente, se esvaindo, num arpejo na mão direita, enquanto a mão esquerda ainda progride em acordes de subdominante e uma nova dominante, a partir do sétimo grau, de uma subtônica que não se resolve, surgindo apenas como colorido último, antes do estabelecer-se único da tônica, em cujo acorde a nota ré representa a persistência da dominante com todo o simbolismo e reiteração que carrega este discurso singelo e cheio de intimidade.

Sua escrita possui uma espontaneidade semelhante à canção popular, e ele próprio compôs algumas canções. Em Cajueiro, com letra de Veríssimo de Mello, há, pelo menos, duas versões da partitura disponíveis mas nenhuma corresponde com exatidão às gravações.


O Instituto do Piano Brasileiro, na pessoa do amigo Alexandre Dias, teve o cuidado de unir gravação à partitura existente: uma versão com a cantora Maria Helena Coelho Cardoso, com a tonalidade correspondente ao texto e uma versão solo em que Oriano divaga um tom abaixo do que se lê. O texto de Veríssimo é sensível, bem ao estilo de sofreguidão que o populário brasileiro carrega em tantas cantigas, inclusive infantis que o próprio Veríssimo reuniu em alguns trabalhos. O cajueiro é uma árvore muito comum pelo Nordeste mas, no Rio Grande do Norte, é mais que isto: trata-se hoje de um parque localizado na praia de Pirangi do Norte, em Parnamirim
e cobre uma área de aproximadamente 9.000m² que só não tem se expandido por causa da circunscrição dada pelas ruas ao derredor. O solitário eu poético da canção é realçado pela harmonia umbrosa e o texto remete como que ao delírio ébrio em busca da sereia que deixou o amante em desejo e melancolia. Os arpejos e quasi-glissandos que vão direcionando as notas principais no acompanhamento pintam esta abstração bêbeda que vaga livremente, hesitando por entre os tempos da métrica binária. A interpretação da cantora, sob a orientação do próprio Oriano traz, romanticamente, a expressividade vocal para o protagonismo a despeito do texto (por exemplo no ápice em boca fechada), e o ritmo vira pretexto para o choramingar de um clamor aos cajus, ao mítico e simbólico cajueiro “na alvura das dunas” que traga de volta o objeto de veneração, a amada fantástica, talvez um mero devaneio de alguém que ama e deseja noivar ou que sonha, merencório, à beira-mar.

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Dunas em Natal, RN
A incansável pianista Elyanna Caldas, dezesseis anos mais jovem que Oriano e também tendo sido pupila do Mestre Waldemar gravou, em trinta de abril de dois mil e vinte, uma transmissão ao vivo, do aconchego de seu lar, um programa com obras de seu amigo Oriano. Simpática e simples como o compositor é sua interpretação, intercalada de alguns comentários que demonstram a intimidade que tinham, estendida à também amiga Iris e a filha do casal. Noutra ocasião, gravação feita no Teatro Santa Izabel, Ellyana toca uma das mais inspiradas obras de Oriano,
a leve e envolvente Valsa de Paris (Valsa de Paris por Elyanna Caldas). É uma peça que nos faz suspirar e imaginar até os pianistas Oriano a valsar com sua Iris ou com sua amiga Elyanna, seja a quatro mãos, ou a seis, seja em valsa de dois quando um dos três vai ao piano para tocar. Há um bom bocado de outras pequenas peças a contar mas vale a pena deixar na curiosidade para aqueles que se decidam surpreenderem-se com Oriano.

E quão mais pobre vai ficando o país sem esses referenciais artísticos! ...

Quão órfãos vamos ficando todos nós sem Orianos por aí, com singeleza, humildade e sabedoria a ensinar e deleitar ouvidos atentos!...

Quiçá nasçam outros tantos Orianos e que possam ter ambiente propício, quer por aqui ou alhures, a florescer em dedicação, talento e exemplo, pois toda a luta pela Música, a “grandiosa encarnação da vida” e, em nosso caso, pela Arte brasileira não pode ser em vão: e que fique em nós a memória, tão vívida quanto a vontade de prosseguir e a terna saudade para reviver.


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