POEMAS DO LIVRO “XXI Sombras (Editora COUSA – 2023)     O poema corre contra o sol nascente para que se espalhe a sombra...

O Estalo da Palavra (XXXI)

poesia capixaba espirito-santense jorge elias neto

POEMAS DO LIVRO “XXI Sombras
(Editora COUSA – 2023)


 
 
O poema corre contra o sol nascente para que se espalhe a sombra dos homens sobre as cores da Terra.


PORQUE CARECEMOS DA ILUSÃO
Precisamos de um novo herói, de um mago, de um mestre dos tempos, que nos corrompa e seja obsceno, que nos derrame o sangue de seu afeto e nos apresente os desígnios das nuvens. (Um bom naco de loucura deixado em nossas bocas; um tanto de ocaso em nossos olhos, mirando o balão negro da saudade.) Precisamos de um novo herói, um mago de cabeça chata, sertaneja, que emancipe os suicidas nos beirais das pontes, que distribua balas em dias de chuva e cure a paralisia dos que não sonham. Precisamos de um novo herói, que o acaso é um outro tempo e a humanidade é de outro homem.


A VERDADE DA HISTÓRIA
Quanto vale a história no mercado da poesia?” João Luís Barreto Guimarães
Eu sou o passado — leitoso — a derramar-se. Não a farsa dos intérpretes, estudiosos do agreste, que dizem ser um enigma o sangue do crepúsculo. Eu sou uma mão espalmada, cobrindo tudo: as mínimas expectativas e as pegadas dos sem juízo; raiz que faz brotar a memória sem pudor. Eu sou o rompante, o atropelo do que aguarda e o tropeço do que dispara. Eu sou rede de arrasto, sou bateia, sou a peneira de malhas finas a colher os peixes para lançá-los no desconforto da irrespirável realidade. Eu sou a tragédia desperdiçada. Eu sou o medo que espreita, a seiva do desassossego. Eu sou a caridade soterrada na imundície dos aterros sanitários, o cemitério das almas virgens. Eu sou a testemunha do apocalipse, do flagelo dos excomungados, do cio das bruxas e suas vassouras a crepitar nas praças. Eu sou a calma da paisagem deserta, a precisão da gravidade atraindo os corpos inertes à fuligem do esquecimento. Eu sou o tormento da palmeira do príncipe no jardim das armas. Eu sou a dissolução do consenso, a filigrana que povoa as guerras, a trapaça. Eu sou o manto da corrupção lançado sobre a verdade, a dissimulação ao sugerir enganos. Eu sou a pedra sobre a pedra sobre a pedra sobre a pedra sobre as presas do Mamute. Eu sou a paz das naus submersas, a boçalidade das ideologias, símbolos da miséria e da peste. Eu sou o elo cravado na carne, a marca da besta nos braços dos inocentes. Eu sou o sem paradeiro das andanças e da ambição. Eu sou a justa trégua em nome da arte. Eu sou o olhar dos santos. Eu sou cálculo, aritmética e o alvo. Eu sou o ressalto antes da queda, a pausa antes do erro, o atropelo. Eu sou o tempo: duração do perecível papiro nos anais do Universo. Sou pronome pessoal, sou cria do homem e chegarei viva ao amanhecer do último dia.


BRUMADINHO
Eu não saberia dizer, estou atordoado, pisar o sem fundo das casas, entrar pelos telhados na vida das pessoas, saber os muitos tons da verdade, que a terra engole a fala dos homens e os aniquila com esse funil de lama tragando o ar e a voz de Minas. O mito é o pássaro que sobrevoa a tarde? Não, isso é poesia, e estou falando da morte.


OLHAR PROFUNDO
Pois se já não brilham os olhos, brilham os cristais de poeira. Desenterre os ossos — e seus medos sem face — deixados em outro tempo. E sobre a areia despeje o brinquedo de armar, essa cama da carne da marionete adormecida.


QUANDO ESTENDI SEU CORPO NA AREIA
Não sei mais de nada. O infortúnio é próprio da falta de sentido. (Ou será a fortuna de ter te conhecido sob o efeito do álcool?) A razão são as estrias que acumulamos na pele, e descamam a cada verão escaldante. Quando estendi seu corpo na areia, à semelhança dos fósseis, um outro tempo dizia qual o nome e o motivo de nosso encontro, e o quanto de surpresa preencheria o vazio de nossa existência.


SILÊNCIO ÁCIDO
Falo agora do seu silêncio, dizendo: se afasta de minha boca Eu queria me recordar, mas o vazio tem a força que aspira os sonhos, e a memória é um tempo perdido no não encontrar o seu abraço (O cinza não suporta o negro das noites e seus redemoinhos) Não aceito esta morte, perder o amor arrebatado do paraíso do seu nome, e a balança que rege as mãos, e o sentido dos gestos, a mentira de rosto limpo nas manhãs de paz Não quero ser obrigado a parar a noite, uma parte constrita de minha existência pertence ao desespero de sua sombra Eu me curo no tardar de sua partida.

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