Manuel Bandeira conta em uma crônica que Dona Santinha, sua mãe, possuía um pequeno caderno onde anotava as despesas domésticas cotidianas. Para o poeta, esse era o volume mais precioso de sua biblioteca: “um velho caderninho de folhas pautadas e capa vermelha,
comprado na Livraria Francesa, rua do Crespo, 9, Recife e em cuja página de rosto se lê: ‘Livro de assentamento de despesas de Francelina R. de Souza Bandeira’”. Puro século XIX. E era mesmo, pois as anotações se iniciaram em fevereiro de 1882, mês seguinte ao do casamento dos pais de Bandeira. Mas esse hábito de anotar despesas ainda vigorou entre nós por toda a primeira metade do século XX, só desaparecendo, creio, a partir dos anos 1980, quando o mundo mudou aceleradamente com as novas tecnologias, anunciadoras da chamada “pós-modernidade”.
O poeta de Pasárgada enumera alguns itens anotados pela mãe:
Calçado para mim | 9$000 |
Uma lata de bolachinhas | 1$000 |
Tesoura e escova | 1$900 |
Espartilho e chapéu de sol | 25$000 |
Uma missa | 3$000 |
Ordenado de Vicência cozinheira | 17$000 |
12 galinhas | 10$000 |
Uma lata de bolachinhas. Espartilho e chapéu de sol. Uma missa. Hoje em dia, quem anotaria algo parecido? Bolachinhas, veja-se, e não biscoitinhos. É o Recife e o Nordeste antigos numa de suas mais autênticas expressões. Nordestino comia bolacha e não biscoito. Agora pode ter mudado, ao menos em certas camadas mais cosmopolitas da população. Mas era bolacha mesmo; biscoito, eram os sulistas que chamavam. Assim como o nosso jerimum para eles era — e é — abóbora. Regionalismos. Vê-se ainda que Dona Santinha pagou mais por uma missa (3$000) que por uma tesoura e uma escova (1$900). E mais do que pela lata de bolachinhas (1$000). É justo, reconheço, porque as coisas do céu devem valer mais que as deste mundo. Mas aí, imagino, deve ter sido uma liberalidade da devota, pois as missas em princípio são gratuitas, assim como a luz do sol e a brisa. Enfim.
Papai também tinha um caderno de despesas. Todo dia dois de janeiro ele iniciava um novo caderno. E ali ele anotava praticamente tudo que gastava, de modo a ter durante o ano inteiro uma visão fidedigna de suas finanças. Comerciante da velha guarda, perseguia obstinadamente se não o superávit, pelo menos o equilíbrio entre o “deve” e o “haver” de suas contas. O grande receio era do déficit, fantasma que não raro lhe tirava o sono de mercador honesto. Dever não era o problema, pois isso fazia parte do comércio, a questão era eventualmente não poder pagar no prazo acertado. Isso era o desastre. Já octogenário, e após mais de meio século de atividade, ele teve a ventura — e o orgulho — de se aposentar sem dever nada a ninguém.
Lembro-me perfeitamente da letra de papai: bonita e viril. Letra de quem praticou caligrafia. Seu caderno de despesas era guardado na gaveta de seu birô. Vez por outra, eu dava uma espiada. Curiosidade de adolescente. Ler aquelas anotações de certa forma me tranquilizava: era como se, através delas, eu constatasse que o velho estava no pleno controle da vida, a sua e a da família. Agora percebo também que aqueles simples registros contábeis eram motivo de orgulho para mim, pois atestavam a retidão paterna, sua responsabilidade com os gastos, sua preocupação em manter-se dignamente dentro de seus limites. Essa (e outras mais) a educação silenciosa que ele me dava, conscientemente ou não. Esse um dos exemplos que dele me ficaram, como bússola ética permanente.
O caderno de despesas de papai não significava sovinice de sua parte. Longe disso. Ele era mão aberta, sem ser perdulário. O mesmo arrisco dizer de Dona Santinha, mãe do poeta, e de tantas outras pessoas que cultivavam esse hábito hoje tornado obsoleto. Coisas de um tempo morto. Um tempo talvez feliz em que uma mãe e um pai valorizavam anotar o que gastou com uma lata de bolachinhas e uma missa.