“Cuidado com a narrativa e a forma. Seu poder pode nos aproximar da verdade, mas também pode ser uma arma com um grande poder de manipulação.”
Serie na Apple TV, direção do mexicano Afonso Quaron, adaptado do livro de homônimo de Renée Knight, com a estupenda Cate Blanchett e grande elenco. Mas quem tem um papel intrigante e ultrapassa todos os elogios é o maravilhoso Kevin Kline, por quem me enterneci no insuperável filme A Escolha de Sofia, no qual ele e Meryl Streep protagonizam o casal atormentado obrigado a fazer escolhas inimagináveis durante a segunda guerra mundial.
“Disclaimer”, palavra da língua inglesa, significa isenção de responsabilidade. E esse é um dos temas dessa eletrizante série, que me pegou no sofá por duas noites. Ah! Como as mães veem seus filhos! Esse também é um dos temas. Como enxergamos a realidade e como a recontamos. Aliás como transformamos isso em ficção, na qual tudo é um recorte, um olhar, um viés. E a verdade? Ah! Essa somos nós que construímos.
A perda de um filho. A reclusão. A não aceitação. Um quarto para a negação. Fotos e mais fotos numa praia italiana. Poses provocantes. Um lábio mordido. Um biquini que foge, escapole, para que o sexo seja mostrado. Uma vadia. Um punheteiro (assim é chamado um namorado, num vagão de trem).
Londres. E as casas dos casais que vivem em alto padrão. Arquitetura contemporânea. E os escritórios? Vidros e a paisagem da London Eye que espia. Ou espreita. Um marido que descobre uma mulher que ele não conhecia. Um ser desejante. Uma mulher que gosta de sexo, que se expõe e quer mais e mais. Isso é insuportável. Um tormento.
Um jovem rapaz que, se excita rapidíssimo. Hormônios. Um voyeur. Uma câmera Nikon. Olhares no Mar Mediterrâneo. Um banheiro público e tudo o que ele pode nos proporcionar. Uma porta entreaberta. Sexo, muito sexo. Mas como diz na serie, tudo é uma questão de ponto de vista. Nas histórias mais ainda. Um livro. Um enredo. Personagens. O real. Um perfeito estranho? Uma reviravolta.
Uma raposa que passa para lá e para cá nos quintais londrinos ou na calada da noite; nada a ver com “The Fox”, a novela de D. H. Lawrence. Mas o amor e ódio perambulam pelas mentes entrelaçadas do enredo. E o personagem de Stephen (Kevin Kline), o pai do rapaz, que prende uma barata num copo. Que usa o cardigan rosa da esposa morta. Uma cozinha suja e degradante. Assim como o personagem. A degradação de uma família. Ele, que se faz de ghost writer; aquele que sofre calado. Que rumina. Que faz chá com leite. E talvez com outras coisas. Que se esconde no papel de bom velhinho e de pai amargurado com a vida e na solidão cruel. Aquele que quer revide. Quer vingança. Quer tudo. Talvez menos a verdade verdadeira. Que mal sabemos qual seria.
A isenção de responsabilidade na serie é um personagem à parte. Até que ponto vai a responsabilidade pela vida adulta dos filhos; pelos traumas; pela invisibilidade de alguns, do vício nas drogas ilícitas; a responsabilidade de quem deixa morrer, seja lá em quais circunstâncias. A isenção de socorro. A isenção de se guardar segredo por algo grave. O esconder. O manipular. A omissão seja lá do que for. A vergonha. A culpa. E os mares revoltos que podem sim, e são, traiçoeiros.
Para o marido da personagem de Cate Blanchett, Robert (Sacha Baron Cohen – o eternizado personagem Borat), parece que foi mais fácil aceitar um estupro da mulher, do que uma mulher desejante como as fotos revelam. E isso, Catherine não perdoa. Imperdoável mesmo, ela diz quando se afasta. Ainda mais ela que, clama por respeitabilidade e correção. Cate Blanchett faz esse papel exuberantemente. Linda e estonteante, assim como Leila George D'Onofrio, que vive Catherine na juventude.
Outro personagem importante e surpreendente é a forma narrativa em si. Uma narração principal em segunda pessoa feita por Indira Varma. Narração essa que, vai descrevendo, maturando e julgando, os personagens e as suas vidas e reviravoltas. Narração que pensa, pondera e questiona as complexidades da natureza humana e suas estratégias, suas artimanhas, seus pecados mais escusos, seus desejos mais sórdidos. Narradores são frequentemente não confiáveis e memórias são subjetivas, tanto na ficção quanto na realidade, e nós, espectadores, vamos descortinando os mistérios da trama sem ar.
Chegou janeiro. O ano começou. Verão. E pelo visto entre um mergulho no mar e uma brisa da praia, vou me deleitando com o prazer de assistir à Séries.