Talvez um dos textos que mais exprimem a impetuosidade devastadora da paixão seja a tragédia de Hero e Leandro, imortalizada pelo poeta grego Museu, que traz um signo como a indicar o quanto uma história de amor é sempre trágica. E, se não for uma tragédia, não é uma história de amor.
Essa é a história de um jovem casal que se apaixonou numa festa à deusa Afrodite. Hero, no entanto, era mantida reclusa por sua família, numa torre da cidade de Sesto, enquanto Leandro vivia na cidade vizinha de Abido, mas do outro lado do Helesponto. Havia um mar entre eles.
Eles, então, passaram a usar um ardil para se encontrar. À noite, Hero agitava uma lanterna do alto da torre, e Leandro se lançava em braçadas ao mar, para, enfim, se encontrarem.
Houve uma noite, contudo, em que Hero, com intensa vontade de ver Leandro, balançou a lanterna, sem se atentar que havia uma tempestade em formação. Então, Leandro, mesmo hesitante diante do perigo, decidiu atender seu chamamento. Mas terminou por sucumbir sob as ondas.
Hero espera aflita por ele até o dia amanhecer, já convencida que o amado não mais lhe queria, mas quando dirige seu olhar para a praia, ela vê o corpo inerte do amado. Então, em desespero, se joga da torre sobre o corpo de Leandro.
É o caso também da moira de Salúquia, no Alentejo, que se apaixona pelo mouro Bráfama. Eles decidem casar, mas, no dia anterior, o mouro resolve fazer uma última peregrinação nas redondezas, sem se dar conta que os cristãos, que estavam retomando Portugal dos mouros, estavam por perto.
Bráfama é morto, junto com sua comitiva. Então, os portugueses, astutos, vestem suas roupas e seguem para a cidade. Quando chegam aos portões, a moira, que estava no alto de uma torre, ansiosa pela volta de Bráfama, percebe que, apesar das roupas serem de seu amado, não era ele quem vestia, e conclui imediatamente que ele havia sido morto. Então, se lança do alto para a morte.
Há tantas outras histórias arrebatadoras de amor que acabam em tragédia, como a clássica Romeu e Julieta, de Shakespeare, que uma indagação se impõe: as histórias de amor sempre acabam em tragédia?
Em “O eu e a psicologia das massas”, Freud vai proclamar que, sob o viés da Psicanálise, estar apaixonado é quando se estabelece, necessariamente, a servidão ao outro, quando esse outro já consumiu o seu ego. Freud também vai postular que o objeto amado normalmente guarda identidade com as vivências da infância, e que essa ligação amorosa é a promessa de felicidade plena que, sem ela, não existirá.
Daí, esse investimento colossal no amante, que estabelece a sua perda como a maior das dores que, de tão insuportável, pode levar ao aniquilamento, tanto quanto sua memória mais arcaica sinaliza. Shakespeare traduz esse pendor num soneto que diz: “Morrestes achando que amava”, e ainda o apaixonado é normalmente “dominado pelo egoísmo da paixão”, que deseja ardentemente e não aceita negação.
Esse pensamento reverbera em Lacan, em “Outros escritos”, quando dá a entender que a paixão é um estado de fascinação e arrebatamento, antes, “um lugar da captação imaginária”. E ainda, é de onde nasce “a excitação maníaca pela qual esse retorno se faz mortal.”
Há, como se percebe nos estudos psicanalíticos de Lacan, Freud e também Winnicott, sempre uma associação entre a paixão e a morte. Há uma proximidade, uma fímbria sutil entre uma e outra. Talvez um frenesi entre o instinto de vida (Eros) e de morte (Tânatos), posto que a paixão ambiciona sempre a vida, mas flerta perigosamente com a morte.
Freud vai objetar que para a perda do objeto amado o eu vai oferecer a possibilidade do luto, que é elaborar a perda e o que a perda representava. Está em “Luto e melancolia”, uma de suas mais notáveis obras sobre as perdas.
Mas, se, para o usual das pessoas, talvez por uma questão de vantagem evolutiva (Darwin), é comum superar a perda, ainda que a custo de muita tristeza e sofrimento, aparentemente para o sujeito devastadoramente apaixonado, a perda surge com o espectro mórbido de um fim. E então vai buscar esse fim.
Ou seja, a perda do objeto amado leva ao vazio, ao sem-sentido para seguir vivendo. Assim, Hero decide morrer, inclusive, até simbolicamente, ao lado de Leandro, quando se joga da torre sobre seu corpo inerte. Da mesma forma, ocorre com a moira de Salúquia, para quem a vida perdeu todo o sentido. Encontrar a morte é como tentar encontrar o amado numa espécie de eternidade. Seguir adiante, sozinha, não seria mais possível.
Há os casos da tragédia de uma paixão não correspondida, que é de certa forma uma perda também, na medida em que o objeto amado se torna inacessível, não pela morte, mas pela rejeição, o que talvez seja ainda mais doloroso.
É o clássico de Goethe, em “O sofrimento do jovem Werther ”. A história é conhecida: Werther conheceu Charlotte Buff num baile e é instantaneamente dominado por uma paixão arrebatadora, mas não correspondida. Diante do amor impossível, e possuído por um sentimento irrefreável, o jovem Werther tira a própria vida. Sem Charlotte, não teria mais sentido.
Esses breves apontamentos não têm a afetação de circunscrever os mistérios da paixão num ensaio definitivo. Muito longe disso. Até faço um alerta: rogo que o leitor não imagine que os versos deste livro são todos forjados apenas por relatos de paixão e morte. Na verdade, são versos, simples versos, que buscam, sem qualquer presunção, certa pretensão de imortalidade, não do autor, mas da magia que só as palavras têm.
Apresentação do livro:
Breves relatos da paixão
■ Helder Moura
Editora Ideia, 2025
Disponível na Livraria do Luiz