Em março de 1972, a prestigiosa revista norte-americana The New York Review of Books publicava uma carta aberta dirigida ao general Garrastazu Médici, o terceiro militar que ocupava a presidência do Brasil após o golpe que depôs, em 1964, o presidente João Goulart. A carta, com o título The Case of Mario Pedrosa, tinha como signatários mais de cem intelectuais e renomados nomes das artes plásticas em todo o mundo e as assinaturas começavam pela
do pintor espanhol Pablo Picasso seguindo-se a do escultor norte-americano Alexander Calder, do ilustrador e escultor britânico Henry Moore, do pintor francês Édouard Pignon entre outras. Era este o teor do documento publicado na The New York Review of Books:
“Nós abaixo assinados, intelectuais e artistas, tomamos conhecimento, com indignação e inquietude, da ordem de prisão preventiva lançada pelo seu governo contra o escritor e crítico de arte Mario Pedrosa.
Conhecemos M. Pedrosa pelos seus trabalhos no campo da arte e ele representa para todos aqueles que o leram ou dele se aproximaram, uma das mais completas expressões da inteligência de um país, que ele sempre representou brilhantemente e soube defender com intransigência e coragem.
Acreditamos que V. é pessoalmente responsável pela integridade física e moral deste eminente brasileiro, cuja personalidade conquistou em todos os lugares a admiração e o respeito de seus confrades.
Esperamos com impaciência e angústia notícias nos dando conta da revogação das medidas que sobre ele pesam por parte de seu governo.”
Conhecemos M. Pedrosa pelos seus trabalhos no campo da arte e ele representa para todos aqueles que o leram ou dele se aproximaram, uma das mais completas expressões da inteligência de um país, que ele sempre representou brilhantemente e soube defender com intransigência e coragem.
Acreditamos que V. é pessoalmente responsável pela integridade física e moral deste eminente brasileiro, cuja personalidade conquistou em todos os lugares a admiração e o respeito de seus confrades.
Esperamos com impaciência e angústia notícias nos dando conta da revogação das medidas que sobre ele pesam por parte de seu governo.”
Mario Pedrosa, crítico de arte de prestígio internacional e que naquela época era perseguido pelo regime militar brasileiro, era bastante ligado à capital da Paraíba, cidade onde ele viveu parte da sua vida, um fato que é desconhecido por muitos paraibanos. Mario era filho de Pedro da Cunha Pedrosa, uma das mais destacadas figuras da vida política da Paraíba na Primeira República. Cunha Pedrosa foi juiz em Pilar e Sousa, participou como deputado da primeira Assembleia Legislativa da Paraíba que elaborou a primeira Constituição paraibana, dirigiu o jornal A União, foi secretário-geral e vice-presidente do Estado, Senador pela Paraíba, Ministro do Tribunal de Contas da União e escreveu uma obra indispensável (Minhas próprias memórias) sobre os primeiros anos do período republicano na Paraíba. Quando da sucessão presidencial de Epitácio Pessoa, Cunha Pedrosa chegou a ter o seu nome lembrado pelo então governador de São Paulo Washington Luís para ser candidato a vice-presidente da República. O escritor José Lins do Rêgo, em texto publicado no jornal O Globo, escreveu sobre Cunha Pedrosa:
“Quisera que os paraibanos que aí estão na política fossem outros Pedro da Cunha Pedrosa, porque assim não passaríamos pela vergonha de termos homens de segunda ordem a pretender postos que sujarão com suas vidas”.
A primeira Assembleia Legislativa da Paraíba foi dissolvida por decisão de uma desastrada junta governativa que por três meses administrou o Estado. Para o historiador Horácio de Almeida a concepção dessa junta era a demolição e seguia em sua “ação demolidora, se mais tempo demorasse no poder”. Com a perda do seu mandato de deputado, Cunha Pedrosa foi para Timbaúba, em Pernambuco, onde seu sogro era proprietário de terras. E foi no engenho do avô materno que, em 1900, nasceu Mario Xavier de Andrade Pedrosa. A família de Cunha Pedrosa somente retornaria para a Paraíba quando Mario já tinha dois anos de idade.
Na então chamada Cidade da Paraíba, nas primeiras aulas no antigo Colégio de Nossa Senhora das Neves, Mario Pedrosa fez uma grande amizade, que perduraria por anos, com dois meninos: o futuro escritor Ademar Vidal e Antenor Navarro, que seria interventor no Estado em 1930. Ademar Vidal, em uma crônica publicada em 1920, escreveu que Mario e Antenor eram os seus “comparsas de primeiras letras e aventuras desenfreadas”. Aos 12 anos, Mario Pedrosa já demonstrava a sua capacidade de liderança presidindo na Paraíba um clube de futebol infantil, o Brazil Foot ball Club, que tinha como secretário o seu amigo Ademar Vidal. Em 1978, Mario contava em uma entrevista: “desde menino, em João Pessoa, gostava muito de futebol. Aliás, João Pessoa naquela época se chamava Paraíba mesmo, joguei no primeiro time infantil da Paraíba. Joguei no Brasil e no América, nos dois times que havia na Paraíba”.
Por essa época, o pai de Mario, considerando o seu “excesso de vagabundagem”, conforme as próprias palavras do escritor, resolveu enviá-lo para estudar na Europa. No dia 13 de julho de 1913, Mario embarcava no vapor inglês Asturias no porto do Recife, aos cuidados do escritor paraibano José Vieira que também ia para Europa. É o próprio Mario Pedrosa quem conta sua experiência no colégio europeu onde, pelo seu comportamento insubmisso, era chamado por alguns professores de “sauvage”:
“Fui estudar num colégio de Lausanne, levado por José Vieira, um escritor paraibano que era redator de debates na Câmara. Meu pai, que era Senador, aproveitou que esse homem ia para a Europa cuidar de sua saúde e lhe pediu que me levasse para estudar em um colégio jesuíta na Bélgica, mas acabei sendo interno num colégio protestante em Lausanne [...] Nos campeonatos de futebol organizados entre colégios fui um dos melhores [...] Em Lausanne eu era péssimo aluno de desenho e tinha um professor muito severo [...] Sei o que me escapava de ganhar zero era minha capacidade de ver apreciar e discutir as coisas com ele [...] Em 1916, como a guerra havia ficado muito intensa atravessei a Europa de trem até Lisboa, onde embarquei para o Brasil.”
Em 1919, Mario Pedrosa ingressou na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e começou a se interessar pelas questões sociais e estudar o marxismo. Paralelamente à faculdade, trabalhava em um cartório pertencente ao ex-presidente da Paraíba Castro Pinto, a quem substituía eventualmente como tabelião. Ao terminar o curso, Mario passou em um concurso e foi trabalhar em São Paulo. Em 1925, foi admitido nos quadros do Partido Comunista, que havia sido fundado no Brasil três anos antes. No início de 1927, Mario Pedrosa retornaria à Paraíba. “Fui nomeado fiscal de consumo no interior da Parahyba!”, comunicava em carta ao amigo Lívio Xavier. Em outra correspondência relatava o seu convívio na Paraíba com o amigo Antenor Navarro:
“Estou na capital da Parahyba. Para o interior não irei, só a passeio. Amanhã mesmo vamos sair de madrugada, em Ford, a Areia, na Borburema, visitar um cemitério de índios, numa gruta trepada 300 metros de altura. A gente tem que bancar o alpinista para chegar nella [...] Mas quando soubemos da cousa já era tarde. Recusar impossível. O Anthenor também vae [...] Devo voltar pro Rio agora por todo este mez. O Anthenor irá commigo [...] Estamos projectando na ida pro Rio, fazermos uma pequena parada em Maceió, onde é fiscal de bancos o nosso fabuloso Zé Lins. Mas vamos tratar de voltarmos todos juntos.”
O irrequieto Mario Pedrosa, em carta, também se referia à apatia que existia na provinciana Paraíba da época, situação que ele tentava minimizar procurando material para enviar ao escritor Mario de Andrade, de quem se tornara grande amigo:
“Aqui nesta província a revolta da gente [...] tem vida difícil, a resignação, a pasmaceira e a calúnia e a umidade do meio não lhe favorecem a vida [...] Minha preocupação maior aqui é procurar as coisas da terra que a gente viu em menino [...] Congo, lapinha, bumba-meu-boi, coco, etc. Quero ver se consigo colher alguma coisa, pra mim e pro Mario que acaba agora de publicar dois livros de prosa ‘Amar, verbo intransitivo’ e ‘Primeiro andar’, contos”.
Mario Pedrosa tentava, naquele momento, um lugar na área diplomática, no qual ele fosse designado para a Europa, recorrendo ao prestígio do senador e ex-presidente da República Epitácio Pessoa:
“Estou cavando forte a merda do logar de auxiliar de Consulado. Com o Epitacio [...] O Epitacio disse a um amigo nosso fallando a meu respeito, que o logar não era diffícil arranjar, que elle arranjaria, mas não servia especialmente porque acha que seria diffícil arranjar designação para a Europa."
No final de 1927, Mario Pedrosa viajaria para a Europa, não pela influência de Epitácio Pessoa, mas indicado por Astrojildo Pereira, do Comitê Central do Partido Comunista, para cursar a Faculdade Leninista Internacional, em Moscou. Na passagem por Berlim, adoeceu e tomou conhecimento das perseguições que estavam sendo praticadas por Stalin contra seus opositores na União Soviética e que culminaram com a expulsão de Trotsky do país. Mario decide então não continuar a viagem. “E como é que eu vou pra Rússia assim?”, escreveu ao amigo Lívio Xavier. Essa decisão é um marco importante na vida de Mario Pedrosa. Durante cerca de dois anos, estuda sociologia e filosofia na Universidade de Berlim e estreita os seus contatos com militantes políticos alemães e franceses.
Ao voltar ao Brasil em 1929, Mario Pedrosa foi expulso do Partido Comunista e passou a liderar o movimento trotskista no país tornando-se o principal alvo dos ataques dos comunistas ligados ao PCB. Fixa residência em São Paulo, onde funda uma editora responsável pela publicação dos primeiros textos marxistas no Brasil e inicia na cidade uma intensa atividade política. Em 1932 foi preso durante a Revolução Constitucionalista e, em 1934, foi baleado em um confronto com integralistas. No ano seguinte, em razão da Intentona Comunista, passa a viver na clandestinidade. Em 1937, com a implantação da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, parte para a Europa no seu primeiro exílio.
A ligação mais estreita de Mario Pedrosa com o movimento artístico, segundo ele, deu-se nos seus primeiros anos no Rio de Janeiro, quando se tornou amigo de nomes da música, como Villa-Lobos, Luciano Gallet, Camargo Guarnieri e a cantora Elsie Houston (irmã de Mary, sua mulher por 46 anos). Também faziam parte do seu círculo de amizade os pintores Ismael Nery, Guignard e o esquecido jornalista e escritor paraibano (nascido em Araruna) Antônio Bento.
Ao chegar exilado a Paris, Mario Pedrosa se integra ao grupo fundador da IV Internacional, organização criada sob a liderança de Trotsky, e no primeiro Congresso da entidade é eleito para o seu Comitê Executivo. Em seguida, vai para os Estados Unidos ocupar o secretariado da Internacional, do qual é afastado em 1940, por divergências com Trotsky. Em 1941, tenta retornar para o Brasil de forma clandestina, mas é preso. Por interferência do seu pai, é deportado de volta para os Estados Unidos. Durante o restante do período da 2ª Guerra, Mario trabalha em Washington e Nova York e faz contatos com artistas norte-americanos como Alexander Calder, de quem se torna amigo. Com o fim do conflito mundial, retorna ao Brasil.
Em dezembro de 1946, Mario Pedrosa inicia no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, com o artigo “Dos Primitivos à Primeira Renascença Italiana”, uma série de textos que fariam com que o jornal criasse uma coluna fixa para ele com o título Artes Plásticas, Para o crítico de arte Wilson Coutinho, “Mario Pedrosa foi, sem dúvida, o fundador da crítica de arte no Brasil”. Por essa época, em uma viagem de alguns meses que fez para a Europa, além de enviar para o Correio da Manhã artigos sobre a situação dos países no pós-guerra, Mario teve encontros com importantes escritores, como André Gide, Albert Camus e André Malraux, que ele descreveu em excelentes matérias publicadas pelo jornal.
Na década de 1950, Mario Pedrosa ingressou por concurso como professor na Faculdade de Arquitetura do Rio e no Colégio Pedro II. Continuou publicando artigos de crítica de arte em jornais, participou da organização das Bienais de São Paulo e assumiu a direção do Museu de Arte Moderna da cidade. Em 1952, Mario esteve, talvez pela última vez, na Paraíba. Fez parte de um grupo de amigos de José Lins do Rego que veio ao Estado participar das comemorações dos 50 anos do escritor paraibano. Em 1954, o cronista Rubem Braga escreveu na revista Manchete em um perfil biográfico de Mario Pedrosa:
“Considerado um dos homens mais inteligentes e cultos do país, é acusado de ‘espírito de porco’ por comunistas e fascistas, olhado com desconfiança por liberais, ditatorialistas e socialistas [...] Ocupações principais: ler e bater papo [...] Vida recatada e serena; homem pálido, completamente distraído, meio astral, adoraria morar num sítio onde houvesse muito silêncio e muitos livros [...] Trata qualquer pessoa igualmente bem, acha graça das coisas nos piores momentos, e é um homem livre, tranquilamente e sem ambição nenhuma.”
O período que vai da redemocratização no Brasil, em 1945, até o início de 1964 foi o mais “tranquilo” na vida de Mario Pedrosa. O golpe que instaurou, em abril de 1964, a ditatura militar no país alteraria novamente a “tranquilidade” do escritor.Inicialmente, não foram criados embaraços às frequentes viagens de Mario Pedrosa ao exterior, para participar de congressos, exposições e como jurado em bienais e concursos artísticos por todo o mundo. Com o agravamento da repressão aos opositores do regime, a partir da edição do AI-5 em 1968, a situação se modificou e Mario teve a prisão preventiva decretada em um processo em que era acusado de difamar o governo brasileiro no exterior relatando casos de tortura no país. Conseguiu asilo na Embaixada do Chile, onde permaneceu por três meses aguardando um salvo-conduto para deixar o Brasil.
Ao chegar ao Chile, Mario Pedrosa foi convidado para ensinar na Faculdade de Belas Artes de Santiago e encarregado pelo presidente Salvador Allende de criar um museu de arte moderna no país. Mas, não durou muito tempo a calmaria chilena. Um golpe militar depôs Allende que, ao ver o palácio presidencial em chamas e sob ataque dos militares, trancou-se em um salão, sentou em um sofá, colocou um fuzil entre as pernas e apoiando-o no queixo disparou contra a própria cabeça. É a versão sobre o episódio baseada nos laudos periciais mais recentes. Com ajuda de amigos, Mario conseguiu se asilar na embaixada do México, de onde viajou para Paris onde ficaria por quatro anos.
Em 1977, com problemas de saúde e tendo informações de que a sua prisão havia sido revogada, Mario Pedrosa voltou ao Brasil. Publica dois livros que escrevera durante o seu exílio na França e retorna a colaboração em jornais. Tinha um projeto para repatriar os mantos do grupo indígena Tupinambá que foram levados do Brasil no período colonial e que estavam expostos em vários museus da Europa. Somente em 2024, mais de quatro décadas depois do plano que Mario pretendia iniciar, a Dinamarca devolveu ao Museu Nacional um dos mantos dos Tupinambá. Ainda restam dez outros a serem repatriados.
Quando do seu retorno ao Brasil, Mario Pedrosa demonstrou interesse pelo movimento sindical que surgiu no ABC paulista e torna-se um dos grandes incentivadores da criação do Partido dos Trabalhadores, publicando artigos na imprensa e articulando adesões de intelectuais para a nova agremiação política, como foi o caso do conceituado crítico literário Antônio Cândido que escreveu que os artigos de Mario “tiveram um papel importante na configuração e no encaminhamento do PT”. Em fevereiro de 1980, na sessão de fundação do partido realizada no Colégio Sion, em São Paulo, Mario assinou a ficha de inscrição como o primeiro filiado do PT. No ano seguinte, poucos dias antes do seu falecimento, Mario deu uma entrevista ao semanário O Pasquim, que foi publicada postumamente, na qual reafirmou o lema da sua vida: “Ser revolucionário é a profissão natural de um intelectual”.
Mario Pedrosa faleceu, no Rio de Janeiro, no dia 5 de novembro de 1981. Ferreira Gullar escreveu o poema A Perda, dedicado ao amigo que falecera:
Foi no dia seguinte. Na janela pensei.
Mário não existe mais.
Com seu sorriso o olhar afetuoso a utopia
entranhada na carne
enterraram-no
e com suas brancas mãos de jovem aos 82 anos