A retrospectiva das músicas mais ouvidas em 2024, revelada pelo aplicativo de áudio, trouxe à memória minha insólita carreira como hi...

''Seremos macacos outra vez'', há 30 anos

cazuza barao vermelho
A retrospectiva das músicas mais ouvidas em 2024, revelada pelo aplicativo de áudio, trouxe à memória minha insólita carreira como historiador. Pelos idos de 2000, aos 22 anos, quase recém-formado, escrevi com colegas da turma de graduação o primeiro artigo acadêmico. Era um grupo de estudos sobre História Cultural do Brasil Contemporâneo ou algo semelhante coordenado por uma das minhas mentoras intelectuais - Profa. Dra. Zilda Márcia Gricoli Iokoi.

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Cazuza (1958—1990) ▪ Fonte: Wikimedia
Escrevemos um livro chamado História e Linguagens, com inúmeros assuntos, abordagens e estilos. Realizei uma pesquisa acerca da obra do cantor, compositor e músico braileiro Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido como Cazuza (1958—1990), artista catalisador das potências e contradições dos anos de 1980.

Pessoalmente, redigi-lo foi fundamental naquela passagem de milênio. Meu pai tinha se mudado para a aldeia da memória. Perdi minha coluna vertebral. Conforme cada vértebra rumava ao céu junto com o Sr. Ervinn, os parágrafos desse texto recompuseram cada uma delas até a C1. Na publicação original não foi possível anexar a matéria jornalística analisada e estrutural ao texto. Trago-a, com o original, nas referências.

Recentemente, retomei o ofício ao escrever sobre outros temas em artigos, dissertação de mestrado, livro didático. Retorno também às minhas análises sobre música brasileira, especialmente as produções realizadas no processo de redemocratização do Brasil e períodos posteriores.

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O Barão Vermelho, em sua formação clássica: Guto Goffi, Roberto Frejat, Cazuza, Maurício Barros e Dé Palmeira. Cazuza integrou a banda nos três primeiros discos. Em janeiro de 1985, o grupo fez uma apresentação épica na primeira edição do Rock in Rio. Em julho do mesmo ano, Cazuza deixou a banda, dedicando-se à carreira solo. ▪ Imagem: Wikimedia
Nesse contexto, destaco o álbum Carne Crua (lançado em 17 de agosto de 1994), do Barão Vermelho, banda carioca surgida em 1981, que, no seu início, contava com Cazuza na sua formação. Cazuza integrou a banda nos três primeiros discos. Em janeiro de 1985 tocaram epicamente na primeira edição do Rock in Rio. Em julho do mesmo ano Cazuza deixou a banda, dedicando-se à carreira solo.


A cena musical do período (1994) é bem interessante. Alguns meses antes, em abril, Chico Science & Nação Zumbi lançaram o disco Da lama ao caos e alteraram o eixo gravitacional da música brasileira, mesclando rock, maracatu e outros temperos; revolucionando letra, musicalidade e estética. Planet Hemp e Raimundos lançaram seus primeiros álbuns em 1995. Somado a tudo isso, também foi o ápice do grunge estadunidense e que obviamente influenciou a terra brasilis, mas que perdera seu ícone Kurt Cobain, da banda Nirvana, em 5 de abril de 1994.

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Naquele tempo, Barão Vermelho já era experiente — oriunda do fenômeno musical denominado rock dos anos 80 junto com outros grupos, a exemplo de Titãs, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso — soube ler o novo cenário musical e partiu para composições mesclando estilos variados em faixas como em Pergunte ao tio José e Vida Frágil; o blues em O inferno é aqui; o punk de Rock do Vapor; os metais de Daqui por diante. As digitais baronescas estão presentes em todas as faixas. Destaques para Carne Crua, Meus bons amigos e Guarda essa canção. Diante dessas características, julgo esse álbum como obra central, mais inventiva e mais rock and roll, que consagrou a banda como uma das principais do gênero no Brasil.

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O álbum Carne Crua é contundente, visceral, alegre, poético, político, notoriamente social e também canta o amor. Cazuza, é perceptível em muitos momentos.

Mas por que recuperar essa peça artística, três décadas depois? Enquanto o ofício da história é analisar as ações em determinado tempo, a arte detém uma outra característica que é despertar no interlocutor uma compreensão do atual momento vivido. A arte é um disparador interpretativo, independentemente de quando foi realizada, se há séculos ou há 30 anos, no nosso caso.

Em todas as faixas percebemos uma mensagem que soa de meados dos anos noventa para os dias atuais, especialmente em Seremos Macacos Outra Vez (uma das mais ouvidas por mim em 2024). Aludo essa música ao movimento reacionário,
negacionista e obscurantista que nos assola na contemporaneidade. Na frase "Descer os degraus da evolução/ Com Charles Darwin resignado/ Voltando pelado na contramão" é a mensagem poética e alegórica do ralo aberto do inferno que o administrador da Terra fez questão de esconder as chaves. Ouvi-la em 1994, aos 17 anos, ecoava em mim como - o que fizemos com a redemocratização? Abrimos o ralo do neoliberalismo que solapou o Brasil e o restante da América Latina. E agora, aos 47 anos, como a mesma frase sublinha meus ouvidos? Estamos diante de um assombroso movimento reacionário em nível mundial, com alguns respiros, a exemplo do Brasil e recentemente com o resultado da eleição presidencial no Uruguai. Mas, nunca a humanidade esteve tão próxima de uma guerra global, de acordo com matéria publicada pela BBC Brasil em 30/11/2024.

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Em 1994, o tempo histórico era outro. O mundo era analógico. A internet, incipiente. A grande novidade tecnológica era o CD, as lojas de discos substituíram os LPs, os encartes e as capas dos bolachões perderam suas artes gráficas. Ano marcado por outros eventos, como a morte de Ayrton Senna, o tetracampeonato da seleção masculina de futebol, a seleção feminina de basquete que conquistou o homérico campeonato mundial, a criação do Plano Real, a eleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e o império do neoliberalismo.

Brasil x China: final do campeonato mundial de basquetebol feminino na Austrália, em 1994.
Qual será o sentido interpretativo do álbum Carne Crua ou da música Seremos Macacos Outra Vez no futuro? Podemos projetar qualquer coisa. No entanto, desejo que Charles Darwin volte com as chaves do ralo nas mãos.
ReferênciasOs alertas de guerra na Europa que preocupam o mundo. BBC Brasil. ▪ Música e ensino de História da história da ditadura: o rock nacional e a “abertura” política. Spotify. ▪ Seremos Macacos Outra Vez. In: Carne Crua. Barão Vermelho, Rio de Janeiro: Warner Music Brasil, 1994. Disponível em: Seremos Macacos Outra Vez. ▪ SCHNEIDER NETO, Julio. “Ideologia Brasil! O tempo não pára”. In: IOKOI, Zilda Márcia (org). História e Linguagens. São Paulo: Humanitas, 2002. p. 211-226. Disponível em: Ideologia Brasil: O Tempo Não Pára!

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  1. Excelente reflexão que mescla cultura com interpretação histórica. O amigo Julio Schneider foi feliz em dosar adequadamente cada uma dessas facetas e entregar esse belo texto. Valeu!

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  2. Caro, Cavalheiro. Honrado com sua apreciação. Muitíssimo obrigado!

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  3. Não conhecíamos o álbum.
    Ouvimos as músicas sugeridas ao lermos o seu texto, Julio.
    Gostamos e ficamos admirados com a diversidade de ritmos.
    Parabéns pela exposição.

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    Respostas
    1. Julio Schneider Neto2/1/25 17:09

      Obrigado pelo espaço de publicação! Feliz que tenham gostado!

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  4. Ah! Esquecemos de um detalhe.
    A menção ao título do campeonato mundial de basquete, em 1994 -- mesmo ano de lançamento de "Carne Crua" -- nos trouxe boas recordações.
    Paula é um mito! Gigante! Inesquecível!

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  5. Julio Schneider Neto2/1/25 17:15

    Bons tempos do basquete feminino! Aquela seleção foi o nosso "dream team". Hortência, Paula, Janete foram sensacionais!!

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