A ideia é de Manoel Jaime, o médico e intelectual que os pessoenses aprenderam a admirar, respeitar e estimar. O cronista como psicanalista da cidade. Uma grande sacada. Pois se o cronista, qualquer cronista, não o é, deveria sê-lo. E para isso o escriba não precisa de diploma universitário, de pós-graduações nem de formação específica. Basta ter e usar a sensibilidade de um observador, atento o suficiente para detectar os humores da urbe, suas neuroses e até seus traumas. Por exemplo, no caso de nossa capital, auscultar se ela vivencia ou não alguma crise de identidade, tipo quem sou eu?, quanto ao seu nome, já que persiste, por insistência de uns poucos, a discussão quanto ao mesmo. Uma discussão que, diga-se, não mobiliza a população, mais interessada em serviços eficientes que em polêmicas obsoletas.
O consultório do cronista é o seu escritório ou qualquer lugar onde se detenha para refletir e escrever sobre a cidade. E esta, sua principal paciente, não marca consulta, pois todo dia e toda hora são propícios às suas confissões. Basta àquele que a atende abrir a janela, para ouvir suas alegrias e lamentos. Ela está literalmente aqui, ali, em todo lugar. É uma paciente onipresente. E que, como os demais, não exige muito: apenas a paciência e a perspicácia do ouvinte, e a sua disposição para bem anotar o que ouve em confiança. A cidade fala, mas quem a ouve? Os políticos?
E um detalhe. Quanto à paciente-cidade, não se impõe o sigilo profissional do analista-cronista. Pelo contrário. O que a analisanda espera e deseja é exatamente o contrário: a ampla divulgação das anotações e observações clínicas do analista, como forma de tratamento regular da paciente. Quanto mais se publicizar, mais esse tratamento terá chances de êxito. Pois que eficácia pode ter uma crônica guardada na gaveta?
O próprio Manoel Jaime é um exímio psicanalista da aldeia. Um arguto, sensível e amoroso observador da cidade que o acolheu há quase sessenta anos. Tanto que ele já publicou um livro que é verdadeira declaração de amor à velha urbe, um roteiro de sugestões que qualquer prefeito pode seguir, sem medo de errar. Por essas e outras, muito deve a capital paraibana a esse finíssimo norte-rio-grandense.
Outro mestre do divã tem sido o decano Gonzaga Rodrigues. Pois o que são as suas crônicas ao longo das últimas décadas se não o primoroso resultado de suas auscultações citadinas? Especialmente as que compõem Café Alvear e Felipéia e outras saudades, obras singularíssimas. Majoritariamente, a cidade e seus personagens constituem o tema gonzagueano por excelência. Por isso ele sente tanta falta do Ponto de Cem Réis. Porque ali encontrava cotidianamente o seu assunto, a paciente de sua análise certeira e ao mesmo tempo poética, a objetividade jornalística banhada nas águas literárias do consumado escritor.
E como não falar em Jomar Morais Souto e seu Itinerário Lírico da Cidade de João Pessoa, verdadeiro tratado poético-psicanalítico da capital? Obra referencial e definitiva, onde a aldeia, desde as margens do Sanhauá, vai se revelando ao leitor, em direção ao mar, com sua história de quatro séculos enobrecendo-a – e protegendo-a – contra o que se vê e, quem sabe, o que virá.
E o que dizer de Luiz Augusto Crispim, que sucedeu a Virgínius da Gama e Melo na crônica diária do extinto jornal O Norte? Crispim, pessoense da gema, tão envolvido e tão comprometido com a cidade natal. Tal como em Gonzaga, o olhar amoroso e a qualidade formal da escrita. Também ele um mestre de sua arte. Um cronista-analista de admirável cultura, não raro um ator principal no palco da vida aldeã.
E quantos mais. Uns, mais; outros, menos. Mas todos psicanalisando a cidade ao seu modo, interpretando-a de acordo com os recursos de cada um. Todos os nossos cronistas, de ontem e de hoje, envoltos no manto telúrico de Nossa Senhora das Neves. Juarez da Gama Batista, Nathanael Alves, Aurélio de Albuquerque e Carlos Romero, para citar apenas alguns, dentre os mais recentes. Cada qual vendo um aspecto, olhando por um ângulo todo seu o que era e é de todos os nativos e adotados. O Ponto de Cem Réis, a Lagoa, o Varadouro, Tambiá, Jaguaribe e Tambaú, tudo cenário de tantos textos, uns preservados em livro, outros, perdidos em jornais, até que um abnegado os recolha para a merecida posteridade. A análise cotidiana de um pacato paciente chamado João Pessoa.
O burgo de mais de quatro séculos, que subiu as ladeiras e conquistou o mar, espalhando-se para todos os lados, inclusive para cima. A aldeia modesta mas altiva, uma pobre orgulhosa, o que é sinônimo de dignidade, de amor próprio, que não se inclina diante de outras majestades urbanas, salvo as livremente escolhidas. Cidade-verde, Capital das acácias. Seus apelidos sempre lembrando a vegetação que a cobre e distingue. Mais vegetal que urbana, nas palavras sábias de José Américo. Sublime torrão, no verso de Genival Macêdo. Frederica, Filipéia, Parahyba, João Pessoa. Que importa o nome, se és maior que eles, mesmo quando te fazes pequenina para melhor caber em nosso coração.
Manoel Jaime tem razão. O cronista é um psicanalista da cidade. E quando ele se aposenta, ela continua frequentando outros divãs, eterna esfinge à procura de decifração.