Há um filme francês, do premiado diretor François Truffaut, de 1975, que traz o pungente sofrimento de Adèle, filha do escritor Victor Hugo. O filme recebeu várias premiações, incluindo uma indicação da atriz Isabelle Adjani ao Oscar de melhor atriz.
Trata-se de um filme que retrata de forma muito realista a desventura de Adèle. A história de Adèle foi produzida a partir de consistentes pesquisas de Frances Vernor Guille (François-Victor Hugo Et Son Oeuvre), com fundamento nos textos escritos pela própria Adèle (Le Journal d'Adèle Hugo), especialmente suas cartas, em que expressa todo o seu sofrimento e suas expectativas em relação ao mundo.
Victor Hugo era então considerado o maior poeta francês, e foi exilado na ilha de Guernsey, após o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte, em 2 de dezembro de 1851. Lá, ele escreveu um de seus romances mais referenciados, “Os Trabalhadores do Mar”. A trágica história de Gilliat e seu amor pela bela Déruchette, filha sobrinha do armador Lethierry
. A esta altura é importante destacar dois episódios que, certamente, marcaram a vida de Adèle. No primeiro deles, a declarada paixão que o crítico literário francês Charles Augustin Sainte-Beuve tinha por Adèle Foucher, esposa de Victor Hugo.
Sabe-se que o escritor decidiu batizar sua filha como Adèle Foucher após um pedido do próprio Sainte-Beuve, que só assim aceitou ser o padrinho da menina. Adèle nasceu em 1830, a quinta filha do casal, e um detalhe relevante, que era motivo de comentários: Victor Hugo e Adèle viviam separados, e as más línguas propalavam que a razão principal da separação era o amor adúltero de Beuve e Adèle, segundo o biógrafo Graham Robb (Victor Hugo, uma biografia).
Adèle mãe já não se sentia atraída pelas demandas do sexo com o poeta Victor Hugo. Ainda seguindo Robb, outro fato relevante é que as suas cinco gravidezes devem tê-la deixado exausta. E ainda havia ainda elementos adjacentes. Victor tinha várias amantes, uma delas, inclusive, acompanhou a família no exílio. E, apesar de supostamente platônico o amor de Sainte-Beuve, havia em torno de Adèle H um evidente signo de um adultério.
O segundo episódio importante, e muito explorado por Truffaut no filme, foi a morte de Léopoldine, irmã mais velha de Adéle. Ela morreu afogada e o episódio marcou Adèle definitivamente. É notório que ela jamais conseguiu superar a perda da irmã. É um pesadelo que carregará para sempre.
Adèle, quando adolescente, foi assediada por vários pretendentes, inclusive um filho de George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant). Mas, terminou por se apaixonar pelo tenente Albert Pinson, do exército britânico, numa sessão espírita.
Mas, não foi uma boa escolha, para a sequência de sua vida. Pinson, além de conhecido como aventureiro e caçador de mulheres ricas, chegou, em certo momento, a tentar casar com Adèle, mas foi impedido por Victor e Adèle mãe, que viam no oficial uma má escolha para a filha.
A resistência da família levou Pinson a desistir e migrar para Halifax, no Canadá, junto com seu destacamento. Então, Adèle, de forma surpreendente, decidiu deixar a família e seguir a rota do oficial, certa de seu amor.
Ela se sente amada pelo tenente Pinson: "Ele me viu [...] a partir desse dia, ele me amava" (Vernor-Guille). Mas, nessa expectativa de correspondência de seu amor, ela está sozinha. Pinson não tinha amor por Adèle. Lacan proclama, a respeito do deslumbramento do apaixonado, como “articulações lógicas determinando essa aspiração do falante de ser considerado ‘homem’ ou ‘mulher’ sem que, da conjunção desses termos, possa-se produzir (necessariamente) relação sexual”.
Pois, Pinson já não demonstra mais interesse na jovem. Então, rejeitada, ela reage de várias formas para tentar convencê-lo a casar. Adèle perde seu amor-próprio e chega a oferecer dinheiro para o pagamento de suas dívidas de jogo, faz ameaças, arquiteta até a mentira do casamento, de que está grávida e tanto torna a vida dele insuportável em Halifax, que ele decide ir embora para Barbados. Visivelmente perturbada, Adéle prosseguiu ignorando os fatos óbvios que se desenrolaram em sua frente, acreditando mais no que se passava em sua mente do que no que acontecia de concreto. E prosseguiu na perseguição a Pinson, já não se importando com suas amantes. Então, diante de novas rejeições, já em Barbados, Adèle atingiu o fundo do poço, e fez aflorar a sua loucura.
Percebe-se, ao longo sua aventura em busca da realização de seu amor, especialmente nos momentos derradeiros, como Adèle tentou criar, ou recriar um mundo, onde pudesse estabelecer as bases de seu amor doentio.
Aliás, Lacan vai especular em um de seus seminários, quando fala sobre as bacantes, sobre a existência de “mulheres que têm um gozo que pertence apenas a elas, elas que não existem e não significam nada”. É como se “esse gozo que se expressa está além das palavras, além do significante fálico, é um gozo que escapa ao simbólico” (Chantal Tanguy e Mariel Martins). É justo supor que essa observação guarda alguma identidade com a autoanulação imposta por Adèle.
Fica evidenciado em sua biografia como Adèle tinha uma espécie de paixão pelo amor insano, que pode ser entendido como um quase amor, mas é um sentimento que, de tão absoluto, se encontra próximo da morte.
A sua paixão, que poderia ter sido arrebatadora, ou até libertadora em alguns momentos, torna-se o combustível de uma tortura, que a consome cada vez mais, perverte seu ser, e devasta sua alteridade. No final, ela talvez já não tenha mais sentimentos. Restaria apenas a solidão de suas próprias escolhas interiores.
Como ainda escreveram as psicólogas Tanguy e Mariel: “Adèle, que escrevia em seu diário que era "essencialmente a filha rainha de Victor Hugo", termina sua vida em uma casa de repouso depois de ter errado de ilha em ilha durante longos anos. Ela se dizia uma "mulher livre" e foi talvez através de sua loucura que ela teve acesso a essa liberdade.”
De Halifax às ilhas do Caribe, Adèle caminha como uma sombra seguindo Pinson antes de se tornar ela mesma a sombra que vaga pelas ruas, com seus andrajos. Ele está se degradando e se tornando um ser miserável, talvez um dos miseráveis do seu pai, Victor Hugo. Adèle avançou em sua paixão devastadora, um martírio que a consumiu lentamente.
De volta à França, foi internada por seu pai num sanatório. É o próprio Victor Hugo quem registra em seus diários de maio de 1872:
“Eu vi minha pobre querida doente. Ela estava no jardim, sentada num banco, um papel e um lápis na mão. Ela escrevia. Esta está bastante calma. Ela pareceu contente de me ver. Ela ouve sempre a voz que a persegue e a inquieta. É como se ela estivesse congelada, mas sem tristeza. O médico acha que ela está melhor.”
Mesmo internada, Adèle sobreviveu até seus 85 anos (em 1915), testemunhou a morte de sua mãe (em 1868), de seus irmãos e de seu pai (em 1885).
E, nos múltiplos escritos que Adèle escreveu, é possível supor como ela sempre esteve a um passo da devastação completa. Como uma sombra persecutória. E, no fim, talvez se possa objetar que ela tentou desesperadamente escapar dessa sombra, do seu eu estranho e atormentador, mas, infelizmente, terminou por sucumbir. Pareceu cumprir sua sina.