Está decidido. O Natal vai ser no mato. Acontecerá entre galinhas, perus, guinés e bichos de quatro patas. Estaremos, eu e os meus, bem próximos de uma manjedoura, o que fará muito sentido.
Esse encontro foi uma bela invenção da sobrinha saudosa dos pais e dos tios que a tiveram como filha para os estudos em João Pessoa até as vésperas do vestibular de Odontologia no qual foi aprovada com louvor. Mudava-se ela, então para o campus da UEPB, em Araruna, cidadezinha com jeito de Brejo e fria, portanto, para os nossos padrões. Agora, com quatro dias apenas de folga, ela deixará São Paulo, onde corrige dentes, caras e bocas, para reunir-se à família na Fazenda Gravatá, pertencente aos pais.
A garota que eu e a patroa não parimos foi além do imaginado. Fez mestrado, doutorado e especializou-se em procedimentos complexos: os da cirurgia estética e bucomaxilofacial. Isso mesmo, a atuação da pirralha que vimos em fraldas vai, hoje em dia, do pescoço à testa de muita gente. Ainda muito jovem, opera na maior cidade da América do Sul e, duas vezes por semana, em Santos e Guarujá. Desce e sobe a serra sozinha. Quem não a viu na barra das saias das mães (a legítima e a adotiva) nunca perceberá a razão do meu espanto.
Enfim, o pessoal da Gravatá nos espera e ali estaremos de muito bom grado. Dezembro não é tempo de rio cheio, de modo que poderemos atravessar o Grajaú, de margem a margem, uma no Rio Grande do Norte e outra na Paraíba, com água pelas canelas. Farei isso bem atento à reação do neto de onze anos. Aos seis, ele fugia ali dos gansos e morria de medo das noites escuras. Menino de apartamento, estranhava bichos e estrelas. Foi um custo mostrar-lhe o Cruzeiro do Sul.
“Se você por acaso se perder, basta traçar uma linha imaginária desde a estrela mais alta até o horizonte, passando pela mais baixa. Pronto, terá encontrado o Sul que dá nome aquela cruz luminosa. Sabendo disso, saberá do Norte, Leste e Oeste”, explicava eu a um neto ainda mais assustado. “E eu vou me perder?”.
Com a idade que agora tem, Miguelzinho, assim desejo, será atraído pela vida no campo. Mesmo que por um breve momento acordará com os galos, verá auroras e poentes deslumbrantes e perceberá que as galinhas não nascem peladas e arrumadinhas em bandejas de supermercado.
De modo avesso, o menino do interior que um dia eu fui acreditava na existência de pés de macarrão, de biscoitos e, pasme-se, de dinheiro. Por conta disso, entendi e amparei meu pequeno neto. Na primeira vez em que ali estivemos, desisti de a ele indicar outras constelações por mais que me encantassem as Três Marias no cinturão de Orion, o caçador. A ele também direi, agora, que elas, batizadas pelos árabes, se chamam Mintaka, Alnilam e Alnitak. E que não são apenas três nem estão alinhadas coisa nenhuma, por mais que os olhos assim nos façam crer.
Quero que Miguelzinho, em seus onze anos, veja o alvoroço do gado quando liberto do curral aos primeiros raios do sol e que atine para a mansidão daqueles retornos à cocheira no início da noite. Espero que ele suba em cajueiro e pé de manga e que entenda como as aves, por instinto, se protegem das raposas, seja nos poleiros, seja em galhos altos.
Mas anseio, mesmo, por que compreenda o quanto é dura e trabalhosa a vida naquilo que possamos, em poucos dias, tomar por um paraíso. Dá trabalho arar, cultivar e colher. Plantas e bichos costumam comer e beber de domingo a domingo, sem descanso para os que deles cuidam. A fazenda, neste sentido, é uma boa escola da vida.
E que, assim mesmo, não perca ele os bons sentimentos. Desejo que aprenda com a prima dentista que uma cidade do tamanho e com as oportunidades de São Paulo não substitui, definitivamente, a família. Se dependesse de mim, meu neto, o pai dele e meus outros dois filhos seriam uma versão masculina da pequena Dorothy, a heroína de Oz, o País das Maravilhas.
Falo da menina encarnada, entre outras jovens atrizes, pela mais famosa delas, a talentosa Judy Garland. Digo da órfã levada de uma fazenda por um ciclone, com seu cachorro Totó, para a Terra de Oz, onde fez amizade com um Homem de Lata, um Leão Covarde e um Espantalho.
Mas não somente isso. Refiro-me, ainda, à capacidade para as travessias com segurança por terras desconhecidas, aos desafios do crescimento e à sobrevivência em quaisquer circunstâncias sem ferir a ética nem a moral.
Falo do propósito do descobrimento, do desbravamento e das prioridades a que se obrigam os jovens de hoje, sobretudo estes, em um mundo globalizado e competitivo.
Mas o idoso que me tornei compreende, sobretudo, as saudades de casa, delicia-se com aquela canção de arco-íris na trilha do filme e com a frase inesquecível: “Nada como nosso lar”. É exatamente assim que quero os filhos, o neto e a sobrinha que também se fez filha: todos com falta daqueles que os puseram no mundo e deles cuidaram.
Afinal, há tempo para o aprimoramento profissional e para os assuntos do coração. No meu velho peito, cabem a labuta e a saudade. Felizmente, também isso percebe, em sua vida agitada, a sobrinha querida. Ouviram, meninos?